Unir o Brasil partido em bandas, desafio da Dilma

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Lula e Serra não viram riscos da exploração política do preconceito e do ressentimento

Em 2006, o fantasma da disputa do segundo turno contra Geraldo Alckmin, do PSDB, levou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva a “apelar”. Tido como carta fora do baralho por culpa do “mensalão”, mas depois favorito nas pesquisas, Sua Excelência contava com a vitória certa no primeiro turno e ela não veio. Foi aí que sacou do punho a carta decisiva para esmagar os adversários que nunca conseguiu desalojar do poder no Estado mais rico e mais populoso da Federação, São Paulo: o ressentimento do pobre contra o abonado, a inveja que o Zé Mané tem do seu sinhô dotô. Nunca antes na história deste país uma estratégia foi tão bem-sucedida. O mapa colorido do resultado das apurações publicado nos jornais não deixou dúvidas de que o Brasil que financia o Estado, pintado de azul, foi vencido pela banda vermelha, sustentada pela “viúva”.


Institucionalmente, o mapa de duas cores nada representa. Lula teve mais votos do que Alckmin e se tornou presidente dos “dois Brasis”. Fruto de sua argúcia e da enorme capacidade que tem de interpretar os anseios do povo, a estratégia deu resultado na contabilidade total dos votos. Mas produziu um efeito cascata difícil de explicar e, depois, quando necessário, de abortar. Não se trata de uma “secessão”, como a que provocou a guerra civil nos Estados Unidos depois que Abraham Lincoln pôs termo à escravidão. Trata-se de algo mais profundo, mais longevo e muito mais perigoso. A semente da discórdia plantada pelo mais popular presidente da História de nossa nada exemplar República faz brotar erva daninha por todo o território nacional, sem que ele mesmo se tenha dado conta. Nem seus adversários.
Sim: José Serra, o candidato tucano que enfrentou o “poste” petista de Lula em 2010, pode até ter ouvido o galo cantar, mas nunca teve a mínima noção do lugar onde ele bateu as asas. O líder máximo, que despiu a faixa presidencial para se tornar cabo eleitoral do próprio capricho, nunca teve exata noção dos efeitos maléficos de seu investimento no difuso ressentimento social e regional do brasileiro. Da mesma forma, o ex-governador de São Paulo permitiu que sua campanha abrigasse uma reação com idêntico potencial de ódio. Para eleger a favorita o ex-líder sindical investiu contra a zelite, neologismo rastaquera que tem seu valor de face: zero. Para se contrapor ao apelo popular da inveja odienta do sucesso do outro, o ex-dirigente estudantil da esquerda se omitiu, deixando prosperar à sombra de sua candidatura a mesma sementeira de ignorância e truculência.
É isso aí. Engana-se quem pensa que preconceito é uma pretensa manifestação de superioridade. Nada disso. Muito antes pelo contrário, é o atestado cabal da ignorância de quem se considera (ou até se sabe) inferior ao alvo de seu ódio sem explicação racional cabível. O demagogo austríaco Adolf Hitler usou de sua astúcia e de sua falta de escrúpulos para explorar o que havia de mais podre e rasteiro nos porões da civilização alemã, cuja cultura produziu Goethe e Marx, Kant e Bach, Beethoven e Schiller. O holocausto dos judeus pelo regime nazista foi a mobilização do ódio provocado nas massas famintas alemãs pela capacidade de sobreviver e prosperar nas piores circunstâncias exibida pelos filhos de Israel. Os turcos são discriminados na Alemanha de hoje, 70 anos após a eclosão do grande conflito mundial, pela ameaça que sua presença significa para os nativos empobrecidos na ocupação de empregos num mercado cada vez mais competitivo.
Mayara Petruso, a universitária de classe média residente no Sudeste que sugeriu a leitores de seu twitter que afoguem nordestinos para vingar a derrota imposta pela mineira ao paulistano nas urnas eletrônicas dos grotões sertanejos, não pretendeu eliminar seres inferiores. Os vários manifestos de orgulho pau de arara que tentaram na internet responder à ofensa choveram no molhado, apesar de chuva e solo úmido serem raros no Semiárido. É inócuo rebater os argumentos dela com exemplos de gênios da estirpe de José de Alencar, Gilberto Freire, Augusto dos Anjos e Jorge de Lima, entre outros, por duas razões. É difícil imaginar que uma estudante do ensino superior se proponha a um genocídio, ainda que virtual, se houver na vida lido uma linha de algum tipo aproveitável de literatura. Mas, ainda assim, algo que pode ser atribuído à intuição feminina deve repetir no fundo de sua crassa ignorância a superioridade intelectual e moral destes titãs sobre os ídolos que encantam a própria mediocridade.
A srta. Petruso e os energúmenos que ecoaram propostas de teor semelhante, acobertados pelo silêncio cúmplice da oposição, esmagada eleitoralmente pelo iniciador desse movimento de segregação, que contrariou sua missão constitucional de garantir a unidade nacional, são sintomas de um mal maior. E esse mal parece recrudescer em episódios isolados, mas similares, como a agressão de um grupo de jovens por homófobos, de madrugada, na Avenida Paulista e o tiro num manifestante da Parada Gay no Rio de Janeiro. Como os preconceitos de origem regional, racial ou de opção religiosa, a homofobia é uma manifestação de ignorância das evidências científicas da tediosa similitude entre seres humanos, animais espantosamente repetitivos em relação aos outros. E expressa ainda um temor que a psicanálise explica: no fundo, o homófobo teme a tentação da opção sexual que rejeita a pauladas.
O arrazoado acima foi exposto para preceder um apelo à presidente eleita, Dilma Rousseff. Ao agradecer à militância do Partido dos Trabalhadores (PT) pelo duro trabalho de elegê-la, ela disse que será presidente de todos os brasileiros, e não apenas dos que nela votaram. Tal verdade contém profunda sabedoria. Oxalá prenuncie que, não conseguindo patrocinar a união, ela contribua para restaurar a unidade nacional, que seu patrono debilitou para obter os triunfos dele e dela nos idos de outubros.

 

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 24 de novembro de 2010, p. A2.

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José Nêumanne Pinto

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