Uma crise pior que a da economia mundial

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Têm faltado aos presidentes dos Poderes equilíbrio e discernimento

Compara-se a oportunidade a uma deusa com uma vasta cabeleira à frente do rosto, para não ser identificada, mas careca na parte de trás da cabeça, para evitar que quem a deixe passar a agarre pelos cabelos. E ela acabou de cruzar o caminho dos presidentes da Câmara dos Deputados, Michel Temer (PMDB-SP), e do Senado, José Sarney (PMDB-AP), sem que sequer eles tenham sentido seu discreto perfume. Dela nem têm sido capazes de vislumbrar o rastro. Já tendo sido presidente da República e presidindo o Senado pela terceira vez, Sarney jogou fora a chance de se redimir do passado que o condena e do presente que de nada o exime – e por mero hábito. Se tivesse posto fim à farra das passagens aéreas de seus pares (a troca de cotas por fretes de jatinhos particulares do tucano cearense Tasso Jereissati, por exemplo), passaria uma esponja em seu legado de esperteza e oportunismo.
Como Sarney, Temer perdeu a oportunosa ensancha, embora tenha tentado pegar uma carona na garupa do cavalo que passou encilhado à porta de casa: anunciou que adotaria medidas moralizadoras na distribuição de passagens de avião aos colegas deputados por ato administrativo da Mesa, que preside. Mas, sem apoio dos parceiros e pressionado pelo baixo clero, transferiu a decisão para a votação em plenário. Depois, adotou uma postura errática, com um ouvido no alarido do baixo clero, que queria manter o privilégio, e outro no clamor da cidadania indignada. Fez o que havia anunciado, mas com desnecessário e desmoralizante vaivém. Dir-se-á que falta a Sarney e Temer a autoridade necessária para impor qualquer medida restritiva aos colegas. Afinal, ambos são useiros e vezeiros passageiros, quando não condutores, de todos os trens da alegria que já partiram e voltaram para o centro da Praça dos Três Poderes. A História mostra, contudo, que a percepção da natureza das circunstâncias pode fazer do “bom ladrão” o companheiro abençoado, como ocorreu na Paixão de Cristo. À falta de instrumentos institucionais para corrigir desvios de grande monta, a cidadania passa a depender do belo gesto do todo-poderoso que se arrepender.
É óbvio que cotas de passagens internacionais não servem para facilitar a locomoção dos deputados pobres (como asseverou o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha, do PT de Osasco) entre Brasília e suas bases – nem para permitir que os bons maridos convivam com suas fiéis esposas -, mas como complemento salarial. São notórios os truques para permitir um desembolso maior de estipêndio sem ultrapassar o teto estipulado de R$ 16.500, sendo um deles este empregado em nome do direito de ir e vir dos nobres legisladores. O que impediu que Sarney e Temer ouvissem o clamor da turba não foi o cálculo frio da esperteza, mas o comodismo cimentado pelo mau hábito sedimentado pela impunidade.
Esta é a típica confirmação da lei política cunhada por uma raposa pessedista mineira, Tancredo Neves, segundo quem a esperteza é um bicho que quando cresce demais termina por engolir seu dono. Em favor de Sarney e Temer só se pode dizer que outros presidentes de Poderes nesta quadra também não se têm comportado à altura de seus encargos. O do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, por exemplo, poderia ter feito ouvidos de mercador aos estrebuchos retóricos de seu colega Joaquim Barbosa em torno de ninharias para, com isso, evitar a exposição das vísceras do Judiciário, que, como o Legislativo, também não tem lá muito de que se orgulhar. De tanto exigirem respeito um do outro, os dois contendores deixaram de lado o respeito por eles devido aos honrosos postos que deveriam honrar. Discutindo com o presidente da mais alta Corte judicial do País como se estivesse batendo boca com um parceiro de copo, o ministro Joaquim Barbosa, em certo momento, fez uma acusação grave: “Vossa Excelência, quando se dirige a mim, não está falando com seus capangas do Mato Grosso.” E tudo ficou como dantes no quartel de Abrantes: nem o acusador provou a denúncia para assim deixar claro que sua palavra de julgador supremo não pode ser posta em dúvida; nem o acusado – pelo menos até agora – exigiu a prova a que tem direito para manter a reputação acima de suspeitas, como convém a quem preside o Poder que julga, condena e absolve.
O bate-boca entre dois magistrados supremos já configura por si só um vexame de monta para a República e seus maiorais, não havendo necessidade de lhe ser acrescentada a jocosa e mui pouco sábia interpretação do chefe do Executivo, na prática um Poder acima dos outros. Em Buenos Aires, interrogado sobre a briga entre Mendes e Barbosa, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva conseguiu fazer dois comentários tão rasteiros como o bate-boca entre os dois ministros briguentos do STF. Segundo ele, “se fosse por esse tipo de coisas não existiria futebol, porque tem briga em campo de futebol todo dia”. E mais: “Esse tipo de briga ajuda a sociedade e a democracia, tudo bem.” Se já era difícil entender por que uma discordância – esta, sim, normal – de pontos de vista de árbitros terminou em xingatório sem propósito, mais duro de engolir é constatar que o homem público mais popular, mais amado e mais poderoso desta República confunde a Suprema Corte de Justiça com gramado e arquibancada. E, mais grave ainda, considera o Estado Democrático de Direito – espaço onde se exercem o direito ao dissenso e o respeito ao contraditório educadamente – com uma arena de luta livre em que as regras mínimas da civilidade e do bom convívio são substituídas por xingamentos sem propósito e acusações sem provas cabais.
A falta de sensatez, equilíbrio e conhecimento de causa dos presidentes dos três Poderes causa um impasse que pode produzir em nossas instituições efeitos mais nocivos que os da crise internacional sobre nossa economia.

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 29 de abril de 2009, p.A2

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José Nêumanne Pinto

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