Uma andorinha só não pára vôos de abutres

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Renan ainda tem força no Senado, que Garibaldi está tornando digno

No universo de firulas e filustrias da política nacional, muita gente boa, e até bem-intencionada, perguntou por que o presidente do Senado, Garibaldi Alves (PMDB-RN), só contestou a malfadada medida provisória (MP) emanada do Planalto consagrando a “pilantropia” após ela ter sido acatada. Mandava a correção burocrática que a porta lhe fosse fechada antes de ela ser recebida e o gesto de coragem e ousadia cívica do chefe do Poder Legislativo parecia perder o valor num debate estéril sobre correção regimental. A boa notícia é que, ao contrário do que seria de esperar, a discussão a respeito da primazia do mérito sobre a oportunidade, ou vice-versa, não prosperou. E pôde a República, enfim, se orgulhar do desassombro de um de seus maiorais, que contrariou o hábito comezinho e ancestral da escalada carreirista dos representantes do povo no topo do poder pela mistura descarada de fisiologismo fantasiado de oportunismo e de pusilanimidade travestida de esperteza.
Apesar do prenome sugestivo, que não recebeu em homenagem ao hirsuto unificador da Itália, mas ao próprio pai, Garibaldi não tem o perfil do combatente temerário, menos ainda do revolucionário ardente. Pertence a uma oligarquia que não foi articulada na posse de latifúndios, mas no populismo assumido do fundador, Aluízio, jornalista de ofício cujo poder não foi consolidado por rebanhos pastoris, mas por currais de votos conquistados com talento, habilidade e capacidade de convencer e influenciar eleitores. Filho de Garibaldi, irmão do prócer, coube-lhe, por via indireta, seguir a trilha do tio, embora fossem os primos herdeiros óbvios na política clânica nordestina – o que já é a primeira surpresa. Governou um Estado pequeno – entre os menores da Federação, apesar do nome longo, Rio Grande do Norte – e assumiu a Câmara Alta numa hora da grande desmoralização do Poder Legislativo por culpa do escândalo protagonizado pelo antecessor, Renan Calheiros, como ele nordestino e do PMDB. Nada sugeria uma passagem de destaque: sem o porte apolíneo que se atribui aos senadores romanos e com uma dicção sofrível, à beira da dislexia, ele parecia fadado a construir uma imagem fugaz como o mandato-tampão que lhe havia sido destinado.
Mas quem esperava uma condução subserviente dos trabalhos do Senado aos desígnios do Planalto, à qual todos já estavam acostumados, principalmente no capítulo das medidas provisórias, teve uma grande surpresa e está tomando grandes e exemplares sustos: Garibaldi nunca perdeu uma oportunidade que fosse de usar a força simbólica do posto ao qual foi guindado, se não por acaso, no mínimo por falta de competidores à altura (as estrelas da Casa desdenharam a brevidade da função), para denunciar a desfaçatez com que o Executivo passou a legislar a pretexto da urgência e da necessidade. Mas também nunca deixou de reconhecer a quem fala – e entre seus ouvintes está o mais interessado de todos, Lula em pessoa – a responsabilidade do próprio Congresso pela situação esdrúxula: o Executivo legisla mais do que deve por excesso de apetite de poder, mas o Legislativo permite que isso ocorra por comodismo e esperteza.
A dois meses de entregar o cargo ao qual não pode concorrer por impedimento regimental (não se permite a reeleição no meio de uma legislatura), Garibaldi encontrou a oportunidade ideal para executar na prática o que sempre pregou, provando que não é disléxico, mas sincero, defeito talvez pior na parolice politiqueira tupiniquim. A MP com que o governo pretendia misturar joio com trigo, dando dinheiro do contribuinte a entidades filantrópicas sérias e a contrafações da caridade, representadas por entidades suspeitas de fraude ou comprovadamente fraudulentas, foi rejeitada com indignação geral. E essa repulsa ética encontrou eco na devolução pelo presidente do Senado – primeiro desafio aberto à desfaçatez com que o Executivo ata e desata no Legislativo.
A coragem do Garibaldi desengonçado pode ter até irritado o chefe do governo, mas este reagiu à altura e surpreendeu a platéia com um roque no xadrez proposto pelo aliado desabusado. Em vez de mandar seu líder na Casa, Romero Jucá (PMDB-RR), recorrer à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), com base na falha regimental aparente da decisão, Sua Excelência o instruiu a transformar a medida provisória em projeto de lei. Assim, Lula confessou de público que a proposta indecente não tinha necessidade nem urgência para tramitar como havia inicialmente encaminhado. E, num lance de sagacidade, esvaziou a discussão da sordidez do texto original ganhando tempo para dissolver a obviedade da amoralidade da MP e amenizando a ira dos mais ferozes críticos da desfaçatez.
A discussão do projeto do governo até deve melhorá-lo, mas ainda restam dúvidas de que a ousadia cívica de Garibaldi tenha depurado de vez os métodos pelos quais os senadores exercem o poder e se relacionam com o Executivo. A influência evidente, embora descabida, de seu antecessor, Renan Calheiros, na escolha do futuro presidente da Casa é prova cabal disso. Disposto, dizem, a se vingar do pretendente do PT, Tião Viana (AC), ou, o que é mais provável, a mostrar que ainda controla espaços significativos de poder na bancada de seu partido, que também é o do atual presidente, o alagoano age com a desenvoltura de quem tem voz de comando e, por isso, exige obediência dos demais. Para tanto conta com a cumplicidade silenciosa do Planalto, que manobrou para mantê-lo no mandato e agora se faz de desentendido para não desautorizá-lo. É triste que o Senado, que age como águia e bica o nariz do rei, exiba de forma tão inglória o próprio traseiro. Mas há pouco o que fazer quanto a isso: andorinha nenhuma, por mais alto que voe, conseguirá deter, sozinha, a revoada dos abutres.

© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 26 de novembro de 2008, p.A2

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José Nêumanne Pinto

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