Paradigma será o governo que punir práticas que Lula tem preservado
“Até outro dia quem entrava no governo olhava o que foi feito no outro: nada”, disse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao passar por Florianópolis, em mais uma viagem pelo País para patrocinar a campanha presidencial daquela que ele diz ser sua candidata à sucessão, a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Ainda segundo Lula, quem vier depois dele dirá: “Eu vou ter que trabalhar porque o paradigma é outro.” Modéstia inclusa!
Essas duas frases reúnem características da índole do chefe do governo federal: a competência de comunicador, a pouca familiaridade com o verdadeiro significado das palavras (apesar de haver decretado uma reforma ortográfica), a autocomplacência e a verve. A megalomania e a graça de ambas não são defeitos do presidente, mas fazem parte da receita milagrosa de sua permanência no topo do poder e no alto do pódio do prestígio popular – algo raro nas democracias contemporâneas, em que os meios de comunicação social de massa criaram uma sociedade que aplaude e dilapida, parodiando o verso do poeta Augusto dos Anjos: “A mão que afaga é a mesma que apedreja.” No meio do segundo mandato, período no qual normalmente os reeleitos são submetidos à execração popular, Lula é amado pelo povo, et pour cause, bajulado pela elite política de antanho, de sempre e, ao que tudo indica, do futuro próximo e longínquo.
Seu governo poderia estar sendo um paradigma – como propugna – se não tivesse, como tantos outros o fizeram antes dele, cedido às tentações do mandonismo desabrido, da fortuna fácil e da glória sedutora. E extirpasse, em vez de manter (até radicalizar), práticas daninhas ao bem-estar comum e à boa governança pública. Se o “mudar tudo o que está aí” houvesse promovido a demolição do sistema de corrupção que controla e domina o Estado brasileiro desde Tomé de Souza, com raras exceções históricas, aí, sim, seu governo seria um paradigma.
Mas o que se viu foi o contrário. Após trocar o terrorismo suicida da implosão do capitalismo selvagem pela acomodação das velhas práticas ao discurso neopopulista para ganhar a eleição presidencial de 2002, Lula percebeu que na gestão pública essa política de conciliação entre opostos para manter o centro intacto seria o rumo mais fácil a seguir. Assim, não sofreria as atribulações da má fortuna de que foram acometidos idealistas que sacrificaram poder e vida para não abandonar seus ideais.
Diante das evidências tornadas públicas da adesão de seus companheiros de partido a práticas do tempo do onça da malversação do erário com a competente, mas amoral, compra de apoio da base política no Congresso, o presidente preferiu adotar o “não ouvi, não vi, portanto, não sei e não preciso pensar”, num ganancioso e pernicioso cartesianismo às avessas. Aliás, essa reação ao óbvio ululante do “mensalão” já resultava de uma postura anterior: a troca da governança pela governabilidade. Ao manter o loteamento feudal da máquina pública federal entre os “novelhos” sócios no poder, o chefe do governo adotou a inércia comodista como rotina e substituiu a ideologia do porvir pelo pragmatismo do passado: cimentou sua base de apoio com a argamassa usada para erigir o Estado brasileiro desde o reinado dos coronéis da Guarda Nacional até a ditadura dos generais fardados.
Essa fusão de autoritarismo com paternalismo, criando a síntese hegeliana da sístole com a diástole, dialética de que falava o general Golbery do Couto e Silva, produziu um País diferente, mas que não pode ser chamado de novo. Este país diferente em que vivemos há seis anos difere do que tem cinco séculos por não haver mais lugar nem para a falsa ira. Quando o senador Jarbas Vasconcelos (PMDB-PE) denunciou seus pares como predominantemente corruptos, todos, inclusive os altos figurões da República lulista, fizeram-se de humilhados e ofendidos. Mas ninguém ergueu a voz sequer para ameaçar processar o ofensor. Ao contrário de seu mestre Maluf, exímio fingidor da indignação de quem defende a própria honra, ainda que não pratique seus preceitos básicos, os atuais príncipes não se moveram, fiéis às novas leis do convívio político, segundo as quais o segredo da sobrevivência no poder é manter-se agachado, mesmo se puxarem o tapete sob os quais se escondiam suas cabeças coroadas.
Quando o presidente foi pilhado fazendo campanha eleitoral para a candidata que ele diz ser a sua, a Advocacia-Geral da União (AGU) não alinhavou evidências de que aquele era um encontro de rotina de gestão pública. Preferiu acusar o adversário mais notório de fazer o mesmo. Ninguém duvida que o governador José Serra (PSDB) seja capaz de recorrer aos estratagemas adotados por Lula e Dilma. O que é cada vez mais duvidoso é que a democracia seja hoje, no Brasil, um jogo de regras limpas ditadas por uma justiça maior que se abate sobre a jugular dos que a desafiam.
A ameaça do senador Wellington Salgado (PMDB-MG) de revelar “podres” de Jarbas Vasconcelos, em vez de listar contra a entrevista dele as qualidades de seus colegas de legenda, é de natureza idêntica. Sob o signo do neocoronelismo socialista dos petistas, não importam as virtudes que professam sem praticar, mas os vícios de todos. Esta é a principal característica que distingue a administração que promete se eternizar no lulismo atual, herdeira dos vícios de Nova República, ditadura militar, democracia de 1946, Estado Novo, Revolução de 1930, República Velha e dois Impérios.
Diante de tudo isto, fica no ar a constatação de que o governo atual não é paradigma de nada, mas, sim, um prodígio de Antônio Conselheiro ou do padim Cícero Romão Batista, do Juazeiro do Norte: só reflete e ecoa os recônditos da alma profunda do Brasil para perpetuar seus erros e adiar seus anseios.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 04 de fevereiro de 2009, p.A2