Minha primeira reação ao ver o documentário A pessoa é para o que nasce foi a lembrança de uma constatação amarga feita por um amigo, Bráulio Tavares, a respeito das péssimas conseqüências para a formação de um intelectual da perigosa mistura de arrogância e ignorância nos anos de formação da juventude. Bráulio e eu nos conhecemos na adolescência, quando ele presidia o Cineclube de Campina Grande e eu, o Cineclube Glauber Rocha. Éramos, por isso, rivais. Nem por isso, deixamos de cometer os mesmos erros e fazer a mesma remissão autocrítica. Com a ajuda de um amigo comum (mais dele que meu, pois fora sócio do Cineclube de Campina Grande), Rômulo Azevedo, diretor de jornalismo da TV Paraíba, afiliada local da Rede Globo, garimpávamos certa tarde arquivos de imagens e sons para encontrar registros mínimos do talento inexcedível do grande repentista paraibano Dedé da Mulatinha.
– Quando morávamos em Campina Grande nos anos 60, bastaria que fôssemos à feira-livre às quartas-feiras ou aos sábados para encontrarmos e ouvirmos por horas a fio o grande poeta popular improvisar com seu ganzá seus magníficos jogos de palavra em magistrais cocos de embolada – comentou Bráulio, e com toda razão. Apaixonados por Glauber, Godard, Antonioni, Beatles, Rolling Stones, Caetano, Edu, Chico e Vandré, empolgados com os textos marxistas, ocupados com os próprios hormônios à flor da pele e embalados pelo sonho da revolução socialista mundial, nós nunca demos ouvidos àqueles torneios semânticos incríveis a nosso bel dispor. Anos depois, extinto o poeta, mobilizados nós dois na campanha de erguer um busto na cidade para nele homenagear todos os profissionais do estro, mendigávamos alguns segundos, no máximo uns escassos minutos da arte que havíamos desprezado no passado.
Assim também foi com o trio de mendigas cegas Maroca, Poroca e Indaiá. As três esmolavam na calçada da Livraria Pedrosa que Bráulio e eu freqüentávamos com alguma assiduidade, na esquina do Beco do 31 com a rua Maciel Pinheiro. Passávamos ao largo delas, incomodados com a falta de recursos, não para lhes dar uma esmola, mas para comprar o livro do crítico grego Ado Kyrou sobre Luís Buñuel, nosso ídolo, ou o último exemplar da Revista da Civilização Brasileira, que mestre Ênio Silveira editava com muito brilho. Mas a falta de dinheiro não nos impedia de parar para ouvi-las. E não parávamos. Mesmo quando cruzávamos o beco para discutir o clássico entre Campinense e Treze com o gravador Tavinho das Canetas, o canto delas perdia-se no burburinho do centro comercial da cidade. Também eram emboladas, mas não inventadas por elas, como as de Dedé e Toinho da Mulatinha, ou as das então ainda crianças Castanha e Caju, mas cantigas de amor, amizade e lida, por elas recolhidas da produção de domínio público e elas reproduzidas com amor e engenho.
Foi preciso o cineasta paulista Roberto Berliner ir a Campina Grande filmá-las. E filmá-las ao longo do tempo, como só os bons documentaristas americanos o fazem, para que as redescobríssemos. E, redescobrindo-as, verificássemos a fragilidade dos esquemas oficiais de apoio à produção artística e cultural dos pobres. O documentário sobre as três ceguinhas de Campina Grande é tocante porque lida com o talento marginalizado dos autênticos artistas da rua, mas também porque não deixa dúvidas quanto às dificuldades para sua inclusão no mercado e sob o abrigo da proteção estatal.
Sim, de fato, o baiano Gilberto Gil, astro da MPB, e Naná Vasconcelos, pernambucano preto e pobre que se tornou o maior percussionista do mundo, as tiraram da calçada da Pedrosa e as puseram no palco de um festival internacional de percussão, com espetáculos para grandes públicos em Salvador e em São Paulo. É verdade também que, depois, elas foram condecoradas pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, por reconhecimento a seu mérito inegável. Ganharam nos shows mais dinheiro do que seriam capazes de recolher com as mãos estendidas ao público indiferente que as conhecia e reconhecia desde sempre. Ouviram o chefe do Estado tecer loas a seu ofício. E voltaram. Para uma casa menos pobre, mas ainda assim pobre, no feio e miserável bairro de José Pinheiro (o Zepa de onde Marcelinho Paraíba saiu para a glória de craque de futebol na Alemanha). E para a mesma velha calçada da Livraria, que virou loja de lingerie, onde nunca lhes dera esmola em dinheiro nem atenção de ouvinte.
É belo, mas é triste. Não é?!