Segundo Tancredo, esperteza demais é um bicho que devora o dono
Tendo apenas as próprias ambições pessoais a apresentar como argumentos para convencer o eleitor a votar neles, alguns políticos, como papagaios, repetem lemas e estratégias cegamente, sem prestar atenção em sua óbvia inutilidade. Membro de um grupo apelidado de “raposas felpudas” – os pessedistas mineiros –, exatamente pelo talento para lidar com o gosto e a preferência populares, o falecido Tancredo Neves costumava avisar a seus correligionários que “a esperteza, quando demasiada, é um bicho que acaba por devorar o dono”. Eis uma frase que os pressurosos assessores que voam rumo a seus candidatos nos intervalos dos debates eleitorais na televisão deveriam ter sempre na ponta da língua para impedir que estes venham a cometer tantos erros infantis. Afinal, como já sabiam os antigos romanos, errar não é um bicho de sete cabeças. Mas insistir no erro seria diabólico, se o diabo fosse burro.
Comecemos pela favorita nas pesquisas, a ex-prefeita Marta Suplicy, que desembarcou na campanha eleitoral absolutamente convicta de que voltará para o antigo palácio dos Matarazzos no Viaduto do Chá impulsionada pela popularidade de seu patrono, Luiz Inácio Lula da Silva. Até agora a história eleitoral brasileira registra raríssimos casos de transferência de votos bem-sucedida, mas pode ser que – no auge da glória em seu segundo mandato, outra coisa rara – o chefe do governo quebre mais esse tabu e consiga convencer aquele que votaria nele a sufragar o nome de sua ex-ministra do Turismo. Afinal, esse milagre da transposição dos votos pode não ser uma miragem, como a das águas do São Francisco para matar a sede do sertanejo ou a das ondas do Oceano Atlântico, que, no dizer de Sua Excelência, não serão atravessadas pela crise dos EUA para cá, embora pertençamos, nós e os gringos, ao mesmo continente americano e estejamos no mesmo lado do pélago e do pré-sal. Ainda assim, seria aconselhável que dona Marta do PT desse atenção ao fato de que seu padrinho perdeu todas as eleições em que disputou votos no maior município do País, entre elas a última, em que enfrentou o mesmo Geraldo Alckmin, adversário dela hoje. São Paulo fica muito longe de Garanhuns.
Ora, direis, citando outro mineiro sabichão, o udenista Magalhães Pinto, política é como nuvens no céu: mudam de figura num piscar de olhos. É verdade. Tudo muda na vida e, sendo a política feita por políticos, ela muda mais rapidamente ainda. Pode ser que, desta vez, haja uma transferência maciça de votos de Lula para a candidata petista e que sua popularidade tenha crescido de tal forma que domingo ele pudesse ter mais votos que Alckmin, ao contrário do que ocorreu há dois anos. Mas vamos convir que a favorita nas pesquisas no primeiro turno melhoraria bastante a probabilidade da própria vitória se prestasse atenção nas lições da História e na sabedoria popular, matéria em que seu ex-chefe é catedrático, sem ter precisado defender tese. A insistência com que ela acusa o atual ocupante do posto que já foi dela, Gilberto Kassab (DEM), de imitá-la ou repeti-la dificilmente mudará a intenção de algum eleitor que votaria nele a votar nela. Afinal, o cidadão se interessa pela obra e pouco está ligando para quem possa ter sido o autor. Se relacionar obras levasse ao triunfo, Paulo Maluf (PPS) não estaria amargando o ostracismo em que afundou.
De qualquer maneira, a ex-prefeita ainda está no lucro, pois começou o ano alijada da disputa pela frase infeliz do “relaxa e goza” aconselhado por ela às vítimas do caos aéreo nacional: tem garantida pelas pesquisas a passagem para o turno decisivo da disputa, por obra e graça da cizânia entre seus principais adversários. Depois de ter conseguido protagonizar o feito inédito de perder votos do primeiro para o segundo turno na última disputa eleitoral, Geraldo Alckmin faz uma campanha cujo lema poderia ser traduzido por um assim: “Vote em mim, porque Gilberto Kassab é ruim.” Contrariando todas as lições do bê-á-bá do marketing político, que parece não ter aprendido na recente derrota para a Presidência, o ex-governador de São Paulo adotou a tática de bater antes para depois beijar, assumindo explicitamente a idéia de que convém insultar o prefeito no primeiro turno para superá-lo e, então, por mera conveniência política, aceitar o apoio dele ou apoiá-lo no turno final. É a leitura eleitoral do famoso fecho do soneto Versos íntimos, de Augusto dos Anjos: “A mão que afaga é a mesma que apedreja.” Dando como favas contadas repetir para prefeito os votos que teve para presidente, mesmo tendo, àquela época, chupado na TV um picolé de chuchu para fazer jus a um apelido jocoso, o que não anima ninguém a votar nele para qualquer cargo, o pretendente do PSDB prefere associar o adversário de hoje e aliado de amanhã a correligionários de outrora – Orestes Quércia, no caso. O que ele se esqueceu de perguntar – e qualquer pesquisador poderia responder – é se algum cidadão deixará de votar no prefeito só por ter sido ele secretário de Celso Pitta.
Alckmin e Kassab, aliás, se acumpliciaram na tola e oportunista tentativa de pegar uma caroninha na cauda brilhante do cometa Lula. Dois anos depois de terem tentado derrotar, em vão, o presidente acusando-o de acobertar os companheiros mensaleiros, o prefeito e o ex-governador parecem dispostos a criar um novo partido para o caso de PSDB e DEM se darem mal domingo – o PLTB (Partido do Lula Tudo Bem). Ainda que tenha blasfemado ao tentar superar o Criador, que encarregou Seus representantes na Terra de proibirem o uso de Seu santo nome em vão, o presidente tem razão quando chama a atenção para a hipocrisia e o oportunismo rasteiros dessa manobra espúria.
Todos esses espertinhos fariam melhor se percebessem que bobo o povo não é: tolo é quem pensa que é e disso ainda tenta se aproveitar.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 1º de outubro de 2008, p. A2