Toda menina baiana tem

Facebook
Twitter
LinkedIn
Pinterest
Pocket
WhatsApp

Caderno 2+Música/Memória

Mesmo sem ter sido cantora ou compositora, foi vital a influência de Dona Canô na história da música brasileira

Claudionor Telles Viana Velloso morreu aos 105 anos sem ter sido cantora, compositora nem instrumentista. Era a mãe de uma família unida e numerosa, criada em torno da matriarca, que não posava de heroína ao feitio Sóror Joana Angélica nem de guerreira como Maria Quitéria. E deixou seu rastro, ou melhor, pegadas na história do cancioneiro popular do  Brasil.

A primeira coube à filha premonitoriamente batizada de Maria Betânia, nome composto inspirado no título de um samba-canção de muito sucesso, uma raridade na vida do compositor e maestro de frevos pernambucano Capiba. Mais velho do que ela, também nomeado duplamente, o mano Caetano Emanuel atribui-se em seus escritos e entrevistas a idéia original dos nomes próprios da irmã. Mas isso importa pouco, pois a verdade é que quem trouxe as canções do rádio para a casa de seu Zeca, o príncipe do clã, foi a rainha mãe, cujo bom gosto se revelou a vida inteira no porte elegante, no capricho no vestir e no trato lhano com que mantinha longe do lar os hábitos pouco civilizados de um tempo dado à cafajestice, ao mau gosto, à deselegância e à brutalidade. Conforme ficou comprovado numa cena de documentário registrada na calçada do solar dos Velloso em Santo Amaro da Purificação, esse apuro que chamava a atenção e lhe atraía simpatia também se traduzia em versos cantados com voz afinada como a de poucos profissionais.

É notória a carreira da filha que se profissionalizou cantando antes do irmão, que era mais velho, mas se tornaria notável depois. A baiana magra entrou no lugar de Nara Leão no palco do Teatro de Arena no Rio para cantar canções de protesto no show Opinião, ao lado de Zé Kéti e João do Vale. E se tornou, logo na estreia, a voz do grito cantado contra a injustiça social e a perda da liberdade que se insinuava e pioraria na ditadura militar que abafou o Brasil por muitos anos e fez correr sangue nos porões da tortura. Moleca da beira do rio do Recôncavo Baiano, Maria Betânia nada tinha que ver com a esqualidez das secas do sertão. Mas sua voz e seu estilo dramático se prestaram muito mais ao berro primevo do “carcará pega, mata e come” do que a emitida pela garganta de veludo da capixaba, musa da bossa nova dos apartamentos de classe média da Zona Sul da Cidade Maravilhosa. Foi um caso de substituta mais convincente do que a substituída, mas logo o instinto cênico da menina de seu Zeca se mostraria mais apropriado aos modos que aprendeu com a mãe entre uma moqueca e um bordado.

O estilo minimalista, mas completo, de dona Canô se manifestou ao longo de toda a carreira da filha artista. A litorânea com nome de protagonista de samba-canção de carnavaleiro se firmou como a intérprete das dores de cotovelo e das angústias da vida, mais apropriadas às margens ribeirinhas da infância e da adolescência. E, apesar de o irmão reclamar da sujeira das águas do Subaé e também se render aos meneios da chula propagada pelo mago do violão Roberto Mendes, foi ela quem mais levou ao palco e às gravações o que aprendeu no salão, na cozinha e nos aposentos da mãe. Santo Amaro mereceu justas reverências nas letras do mano Caetano, mas sempre foi mais presente nos palcos de Betânia: na religiosidade afro, representando a fé cristã sincrética de dona Canô, nos versos de Fernando Pessoa recitados mais na glote do que nas cordas vocais e num repertório de plenilúnios e correntes fluviais rumo à baía de Todos os Santos.

Caetano, que levou Betânia ao Rio no papel de guardião, terminou por lhe seguir os passos como artista dos sons, embora sempre imaginasse estar mais predestinado a letras ou a imagens. Fosse qual fosse sua opção, esta seria abençoada pela mãe, da mesma forma como ela é apontada pelo filho como a alcoviteira-mor de uma das parcerias mais profícuas da Música Popular Brasileira: a dele com o sertanejo Gilberto Gil, segundo dona Canô, “aquele preto que você gosta”.

Dona Canô gerou dois monstros de nosso cancioneiro no ventre, nas novenas que o filho cantou e em seu jeito manso e musical de ser.

José Nêumanne é poeta, escritor e jornalista.

(Publicado no Estado de S. Paulo do sábado 29 de dezembro de 2012, Pág. D7)

Facebook
X
LinkedIn
Pinterest
Telegram
WhatsApp

Nunca perca nenhuma notícia importante. Assine a nossa newsletter.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

José Nêumanne Pinto

Blog

Jornal Eldorado

Últimas Notícias

Últimas Notícias