Mito – Boni revê em livro uma trajetória que é sua, mas que bem vale como a história da TV no Brasil
Ao chegar à TV Globo com Walter Clark, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, resolveu investir numa atração popular, mesmo correndo o risco de comprometer outro objetivo do grupo de profissionais que havia assumido o desafio de fazer a emissora da família Marinho “decolar”: Abelardo Barbosa, o Chacrinha, tinha um programa popularesco na TV Rio e foi contratado a peso de ouro, sob o compromisso de não “apelar” tanto como fazia no outro canal. No dia da estreia, contudo, o apresentador chamou Anthony Ferreira, seu gerente de produção, e, às escondidas, divulgando por um folheto, promoveu o concurso “Cachorro com mais pulgas”.
Os altos índices de audiência foram comemorados pelo comunicador, que comentou: “O Boni quer melhorar o nível, mas a Globo tem é que ser mais popular”. Mais de cem cães concorreram e o vencedor tinha sete mil pulgas. No dia seguinte, foi estendida uma faixa na rua da sede da emissora, no Jardim Botânico: “Querem manter a Pacheco Leão? Acabem com o Chacrinha!” Com o prédio novo infestado de pulgas, este foi procurado pelo chefe dos serviços gerais, coronel Paiva Chaves, que lhe disse que não poderia repetir o feito. “Eu faço o programa, o senhor dedetiza, tá bom?”, reagiu ele.
Dado o recado, Paiva Chaves continuou em seu emprego e Chacrinha virou o Velho Guerreiro, protagonista dos comunicólogos do mundo inteiro, autor do lema fundamental para a profissão: “Quem não se comunica se trumbica”, que o criador do Padrão Globo de Qualidade usou como título para o capítulo que lhe dedicou em O livro do Boni, editado pela Casa da Palavra.
O conflito entre o grupo que entrou na Globo para transformá-la na Vênus Platinada, a monopolista de audiência na televisão brasileira e o carro-chefe da entronização do veículo como a referência máxima de informação e entretenimento nos anos seguintes a seu desembarque no Jardim Botânico, e a cubana Gloria Magadan não foi tão polido. Num baile, ela chegou a morder a orelha de seu par, Daniel Filho, que Boni nomeara para dirigir telenovelas cujo núcleo ela comandava, com força e com vontade. O contrato dela com a Globo lhe dava poder total, mas Boni o leu com atenção e descobriu que era dele o poder de tirar as novelas do ar em qualquer capítulo. Além disso, já tinha confiança no grupo fiel que formou em torno dele e de Daniel, principalmente com a revelação do talento para entender o gosto do povo demonstrado por Janete Clair, mulher do dramaturgo baiano Dias Gomes, que dirigia a Rádio Clube do Brasil, em 1949, quando, na pré-adolescência, Boni o seguiu como uma sombra para aprender com ele como se dirigia uma emissora de rádio.
No topo da audiência, que o Velho Guerreiro havia ajudado a consolidar, tendo transformado suas telenovelas em produto comercial para ser vendido no mundo inteiro, antes que terminassem os “anos rebeldes” de 1960, Boni e Clark contaram com o apoio do diretor comercial, José Ulisses Arce, para tornar viável uma ideia que era combatida entre outros executivos da emissora, um telejornal em rede nacional, por dois motivos, resumidos por Armando Nogueira, que, como diretor do jornalismo, foi o responsável por sua execução: “Não há dinheiro e as afiliadas não vão querer”. Arce rebateu num almoço da cúpula da Globo: “Ponham no ar que vendo em uma semana”.
No Livro do Boni, o autor resumiu num parágrafo o que levou o Jornal Nacional à “grade” de programação, conceito revolucionário usado por aqueles mesmos executivos para racionalizar a produção e a comercialização de seus programas: “Na televisão toda obra é coletiva. Cada projeto exige a participação de muitos profissionais de diversas áreas. A televisão brasileira nasceu muito depois da televisão americana e, portanto, nasceram lá fora quase todas as ideias e soluções para a televisão. Não que a televisão brasileira seja uma cópia da americana. Não é. Mas eles equacionaram muitos problemas antes de nós e superaram vários desafios que só enfrentamos muito mais tarde”.
Estas duas afirmações categóricas do homem apontado por seus áulicos como o responsável pela implantação da ideia de “grade” recomendam a leitura das 464 páginas do livro que já está produzindo polêmica, mas, por isso mesmo, é de leitura indispensável para os profissionais de comunicação, sejam jornalistas, sejam artistas, sejam publicitários. E também para o grande público, que acompanha os bastidores da televisão com a mesma atenção com que não perde os shows de humor, as transmissões esportivas, os programas de variedades e tantos outros produtos vendidos na telinha nossa de cada dia.
Com a ajuda de um pesquisador atento, seu lugar tenente Carlos Vizeu, ex-auxiliar na Globo e executivo da TV Vanguarda de São José dos Campos, do qual é proprietário, o autor pôs os pontos nos is ao relatar sua experiência como publicitário em agências mitológicas como a Lintas e suas passagens pelas TVs Paulista, Excelsior, Rio, Tupi e Bandeirantes antes de se tornar o mais conhecido e reconhecido executivo do ramo no Brasil.