Governo somente perderá votos se e quando a crise esvaziar bolsos
A aprovação – medida pelo Datafolha – por 49% dos brasileiros da forma como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva gere a crise não repete os índices espetaculares de seu desempenho no cargo, mas estimula governistas e é uma ducha gelada para a oposição. Surpreende quem esperava um número menos estimulante aos sonhos continuístas pela boa razão de que o governo brasileiro não tem feito muito a respeito: sua primeira reação foi de desdém; a segunda, de pânico; e a terceira, na velha base de vamos deixar como está para ver como é que fica. Em nenhum dos três casos o chefe do governo se mostrou particularmente apto a amenizar os efeitos do desastre financeiro internacional em nossa economia. E isso por si só basta para mostrar quão hábil ele é para se comunicar com seu vasto e fiel eleitorado, convencendo-o de que o mínimo que ele está mandando fazer é o melhor que poderia mesmo ser feito.
Este é o segredo da impermeabilidade do homem: não necessariamente fazer o melhor, mas mostrar a quem interessar possa – o operariado de baixa de qualificação e o lumpemproletariado, mas não só estas camadas mais pobres e desinformadas da população, pois as pesquisas têm detectado o crescimento de sua aceitação por classes mais favorecidas e instruídas – que o líder continua a seu lado e defendendo seus interesses. Estes começam pela mágica da multiplicação das proteínas postas à mesa dos mais pobres pelo milagre da Bolsa-Família e terminam nos negócios da alta burguesia financeira com o beneplácito da autoridade generosa e disponível. No miolo do sanduíche fica a classe média, espremida, desarticulada e desorganizada, incapaz, portanto, de reagir aos riscos de descenso social, até agora evitado pela bonança reinante nos países consumidores de nossas commodities. Estas antes eram cotadas a peso de ouro, mas já começam a rumar para os preços de banana na nova situação provocada pelo desabamento em tempo real dos pregões das bolsas do mundo inteiro. Enquanto seu lobo não vem, contudo, a classe média vai passear na floresta no trenó de Papai Noel, adotando a prática confortável de não sofrer por antecipação.
Enquanto o futuro presidente americano, Barack Obama, no olho do furacão e de olho no furacão, alertou que o pior está por vir, Lula manda os patrícios sem dívidas comprar. O alerta de Obama é costurado com a linha do realismo e a agulha da prevenção. Alvo das esperanças do mundo, depois de eleito para domar uma crise que pode levar todos à bancarrota, o futuro fiel depositário do maior tesouro do mundo advertiu a sôfregos e trêfegos que não opera milagres. Lá, como cá, uma é a retórica eleitoral e outro deve ser o discurso oficial. O “nós podemos” dos palanques – ainda antes da posse – tornou-se um “nós sabemos”. O candidato inspira, o governante terá de transpirar. O presidente do Brasil não tem as responsabilidades do colega americano em relação à crise, já que ela não nasceu aqui nem pode aqui ser resolvida. E também porque os efeitos deletérios dos erros e benéficos dos acertos da futura gestão democrata repercutirão pelo mundo inteiro, enquanto os do governo petista se abaterão apenas sobre nossas cabeças.
O incentivo de Lula ao consumo, neste momento em que um líder mais cônscio da situação e mais consciente de seus deveres recomendaria cautela, pode ser patético. Pois, de fato, ninguém em sã consciência vai comprar um carro, um apartamento ou outro bem de consumo durável de alto valor só porque nosso guia mandou. As pessoas só compram o que querem e o que podem, independentemente dos estímulos que recebam, seja de quem for. O que importa na frase de Lula é que ela está perfeitamente sintonizada com o que a grande maioria da população está pensando e fazendo em relação à crise. Mais que aconselhar a consumir o presidente refletiu o que o brasileiro comum pensa e como o seu eleitor potencial age. Enquanto a crise dos mercados não lhe tirar o emprego, no caso do trabalhador, o prato cheio, no caso do lúmpen, ou o bom lucro de cada dia do banqueiro, o brasileiro médio o apoiará, confirmando a regra, que comporta raras exceções, segundo a qual quanto mais o eleitor se sentir bem, mais prestigiará alguém lá em cima por cujo conforto responsabiliza e recompensa com seu sufrágio.
Obama, esperança de praticamente todos, desceu do palanque porque sabe que esse não é o lugar adequado para encontrar as medidas necessárias para decepar o nó górdio da crise e, com isso, frustrar o mínimo possível o planeta inteiro, que conta com ele. Lula não desceu ainda, primeiro, porque não aprendeu a fazer na vida algo muito diferente de uma competente campanha eleitoral e, em segundo lugar, porque ninguém (nem nada) até agora, pelo menos, exigiu dele que o fizesse. É humanamente impossível que a esperança de todos não termine por frustrar muitos, pois, afinal, não são raras as divergências dos grupos que fazem demandas conflitantes. O sucesso do surfe que nosso presidente se compraz em praticar vai depender, na vida real, muito mais do rumo que tomar a onda externa que de sua prancha particular e seu estilo de cavalgá-la.
Antes da crise e neste momento em que ninguém ainda atina ao certo de onde veio o tsunami nem para onde vai, o presidente brasileiro tem contado sempre mais com a sorte, que não lhe tem faltado, que com o juízo, que ele também, justiça seja feita, tem exibido sempre que é exigido. Sendo impossível vaticinar se a sorte continuará bafejando sua nuca, com efeitos benéficos para todos os brasileiros que o elogiam aos pesquisadores dos institutos de opinião, pois a sorte pode ser generosa, mas também costuma ser traiçoeira, resta-nos rezar para que ele tenha boas reservas de juízo para usar quando for preciso.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 10 de dezembro de 2008, p.A2