Receita não revela quem mandou violar sigilo de tucanos para poupar candidata do chefão
É difícil imaginar que possa haver algo ainda mais execrável, apesar de não necessariamente mais hediondo, do que o crime cometido pelo funcionário da Receita Federal que violou o sigilo que, pela Constituição, deveria proteger as declarações de imposto de renda de quatro tucanos de alta plumagem. No entanto, há algo que pode competir, não em delinquência, mas sim em desfaçatez: a forma como seus protagonistas têm tratado o assunto.
O primeiro lugar no pódio cabe à Receita. Depois de dois meses de diligências (pelo visto, o termo definiria com mais precisão as carruagens que transportavam valores e passageiros no oeste sem lei dos Estados Unidos na corrida do ouro na Califórnia do que o interesse de descobrir algo na investigação instaurada pelo órgão), o Fisco pareceu sempre mais empenhado em encobrir os criminosos que em desvendar o crime. Em entrevista coletiva conjunta, o secretário Otacílio Cartaxo e o corregedor Antônio Carlos d’Ávila admitiram a existência de um grande “balcão de venda de sigilo” no ABC paulista. Mas não se dignaram contar ao distinto público do qual cobram impostos o que descobriram nem o que farão para punir essa modalidade grave de banditismo que assola uma repartição que depende de fé pública para funcionar. Pior: nem mencionaram a hipótese no pedido de indiciamento das servidoras que acusaram. Ah, mas afirmaram que não veem motivação eleitoral no vazamento dos dados fiscais de cidadãos ligados ao candidato do PSDB à Presidência, José Serra! A esclarecer o cidadão fizeram o possível para fazer valer a impunidade na corporação e ainda blindar a candidata governista, Dilma Rousseff, e membros de seu quartel general. Num estilo que o chefe do governo federal, Luiz Inácio Lula da Silva, inaugurou, ao atribuir, em Paris, a movimentação ilícita de dinheiro para comprar apoio ao governo no Parlamento a mera “caixa 2” de campanha, também ilícita, os dois dirigentes mandaram às favas, junto com os escrúpulos, a velha e boa lógica aristotélica.
Cui prodest? (a quem interessa?) – aprenderam da trágica grega Medeia os antigos romanos, dos quais Lula usa e abusa do in dubio pro reo (na dúvida, a favor do réu), mais conveniente para a “companheirada” que ele luta para proteger dos rigores da lei. Sendo cobradora de impostos, de quem, por dever de ofício, se exige lisura maior do que de quaisquer outros servidores públicos, a dupla dedica lerda tolerância a coleguinhas de carreira e de campanha eleitoral, oposta à ágil intolerância com que lida com o contribuinte, mesmo quando não lhe viola sigilo algum. Mais do que indiciar subalternos importa identificar a quem possa interessar a devassa dos dados fiscais de Eduardo Jorge Caldas Pereira, Ricardo Sérgio de Oliveira, Luiz Carlos Mendonça de Barros e Gregório Marin Preciado, todos notórios adversários do governo. E atribuí-la às próprias vítimas, como fez Dilma Rousseff, é concluir de público que nada do que o PT os acusou foi comprovado após lhe devassarem a contabilidade.
É um paradoxo interessante de lógica elementar, este: a Receita não garante o sigilo dos contribuintes, mas tudo faz para guardar em segredo a identidade dos criminosos que o violam. Contrariando o sentido da expressão on real time, usada no universo da cibernética para garantir que em computador tudo se sabe na hora, os servidores Cartaxo e d’Ávila levaram dois meses para pedir o indiciamento de quem cometeu o crime, mas apostam no que não poderiam saber sem conhecer os mandantes e seus motivos. Sem terem identificado quem deu a ordem, se dizem capazes de adivinhar por que o delito foi consumado. Diante disso, o que restaria ao PT senão exigir na Justiça indenização do candidato tucano à Presidência pela “injúria” por ele cometida ao atribuir a autoria que a corporação não consegue definir baseado apenas na evidência, mais velha que a Sé de Braga, de que o meio mais rápido e eficaz de encontrar o autor de um delito é buscá-lo entre os que deste podem tirar proveito? E quem se beneficiaria com a quebra do sigilo das vítimas, a não ser seus adversários políticos? O patriarca de Veneza? O bei de Túnis?
Nem a atitude de José Serra no episódio pode ser considerada exemplar. Como pretendente a primeiro guardião da ordem institucional, et pour cause, do direito do cidadão à privacidade, o ex-governador paulista não fez bem em tentar tirar proveito eleitoral do crime. Afinal, não há evidências de que o eleitorado que ele disputa com a petista de última hora Dilma Rousseff esteja muito interessado no assunto. Melhor faria, a meu ver, se assumisse uma postura de defensor desses direitos de uma forma até mais dura, mas genérica, não se colocando como vítima, mas como promotor.
A indiferença geral com que esse gravíssimo delito tem sido recebido pelas vítimas em potencial – quaisquer cidadãos que possam ter o imposto de renda devassado por um servidor xereta da Receita – permitiu à candidata governista condenar “a baixaria”. “Baixaria” de quem, cara-pálida? Do criminoso pago com dinheiro público para servir a interesses partidários nada republicanos, seja para vender as informações no balcão, revelado, mas não denunciado, pelos maiorais do Fisco, seja para usá-las como bomba de efeito eleitoral? Ou “baixaria” seria denunciar o grave delito flagrado?
Com o presidente mais dedicado a fazer da favorita sucessora do que a cumprir o dever jurado e o Congresso ajoelhado a seus pés para debicar as migalhas jogadas do alto de sua inusitada popularidade, pouco há a fazer para salvar o resto de honra republicana que ainda se pode resgatar. Ao permitir que a vítima violada rompesse a barreira de gelo do segredo que protegia os violadores, a Justiça deu a esperança de que as instituições poderão resistir a esse cínico descaso quanto aos direitos básicos da cidadania. Só o fortalecimento destas nos salvará de mais quebras impunes de sigilo
O Estado de S.Paulo
01 Setembro 2010 | 00h00