Variedade de recursos, a partir da herança cabralina, marca Os Viventes,
do gaúcho Carlos Nejar, que ganha nova edição
Os Viventes chama a atenção, de início, pelo porte. Geralmente, coletâneas poéticas são raquíticas. Esta, não: o volume em que Carlos Nejar retomou a mesma obra pela terceira vez pode ser confundido nas estantes com portentosos romances de Érico Veríssimo ou Thomas Mann. Tendo a obra reunida do autor vindo a lume há pouco em dois livros grossos de capa dura, é possível ter uma ideia de sua fecundidade, rara no gênero. Mas não é isso que mais chama a atenção na produção poética do gaúcho com passagem pelo Espírito Santo antes do pouso no Rio. E, sim, o fato singular de conter uma tentativa (bem-sucedida) de estabelecer uma voz própria e singular, a exemplo do que ocorreu com o maior poeta brasileiro (e um dos maiores do mundo) em seu tempo, João Cabral de Melo Neto.
O rigor formal, a métrica esquálida e a temática incomum, fugindo dos temas banais do amor, sorriso e a flor, do poeta pernambucano o tornou, mais do que único, a matriz de toda a produção poética brasileira desde 1945, quando foi publicado seu terceiro livro, O Engenheiro. A dicção cabralina – marcante, pessoal e inconfundível – tornou-se um desafio perdido pela quase totalidade de poetas brasileiros que a tentaram imitar ou emular. Ela também deixou rastros em Nejar, como fica evidente em O Guaíba no Poente: “O Guaíba com suas patas, / focinho, cinchas de água / vai carregando o sol, / carrega o poente às costas, / e não há um outro igual, / mais ancho, de orelhas postas / entre as pétalas do ar”. Estes são versos poderosos e pessoais, mas não disfarçam a herança cabralina, que arruinou a fortuna crítica de tantos outros menos dotados do que Nejar.
É de destacar Discurso do Cupim como amostra desta citada voz “nejarina/’: “Eu, cupim, presido / a realidade / e à realidade acato, / sem o crime / de me haver condenado. / Sei de onde vem / o homem e para onde / vai. Exalto e toda / a saciedade como / a madeira mastigo”
Ivan Junqueira registrou, no prefácio, o fato de seu colega na Academia Brasileira de Letras (ABL) ter acompanhado ainda o rastro de Cabral na substituição do genérico lirismo egocêntrico pela narrativa romanesca na terceira pessoa. Não se trata, é claro, de um recurso original. Ao contrário. A narrativa épica se contrapõe ao intimismo lírico desde a Grécia antiga quando os rapsodos sintetizados em Homero narraram gestas heróicas, que se constituiriam marcos da forma poética, passando pelo romano Virgílio (A Eneida) até chegar às pedras de fundação do dialeto toscano tornado idioma italiano (A Divina Comédia, de Dante Alighieri) e do galaico-luso cristalizado no português moderno (Os Lusíadas, de Luís de Camões). A terceirização da voz poética, adotada nos romances dos cordéis de feira no Nordeste, é outro exemplo de que a fonte cabralina, em que o autor bebeu, já se originava em outras vertentes.
Mas Nejar não pode ser considerado um reles epígono de Cabral. Há em Os Viventes exemplos de poemas pautados em formas fixas, além de outros feitos para serem lidos em voz alta, e não apenas impressos em papel, mercê do recurso à forma toante, introduzida no interior de versos reiterativos e recheados de anáforas. Essa variedade, tornada inexorável pelo volume de papel contido entre capa e contracapa, também se explica pela história da obra, lançada em 1979 com 66 “personagens-poemas” e reeditada com a adição de mais 113. Nesta terceira edição, foram acrescentados mais 300 textos. Esse percurso, que lembra o místico Livro de Areia, de Jorge Luís Borges, e remete, inevitavelmente, à saga de Folhas da Relva, de Walt Whitman, é, a um tempo, fascinante e arriscado.
A dificuldade de cumprir a tarefa da regularidade, exigida de todo poeta, mas dispensada, só para recorrer ao exemplo mais comum, pelo citado Whitman em seu livro interminável, foi largamente compensada, neste caso, pela presença cintilante de alguns poemas antológicos de nossa literatura. Brilha, por exemplo, em faíscas de sabedoria histórica e felicidade imagética a abertura de Judas Iscariotes, uma das glosas de temas bíblicos da “Arca da Aliança”: “Desta árvore / a humanidade pende / calada”. E o leitor se vê, de repente, desabando estrofes abaixo em queda livre até se espatifar no terceto final: “Também sou preso / na mesma cruz. / Mas não ressuscitei”.
No conjunto de poemas de “A Nau dos Insensatos”, o universo mítico helênico é reconstruído com uma habilidade que certamente encantou o prefaciador Ivan Junqueira, outro cultivador do apreço parnasiano (recuperado pela geração de 1945) pelo classicismo da antiguidade. Ulisses é um feliz exemplo desta amostra de que o autor navega pelas formas tradicionais com a mesma originalidade exibida na voz peculiar conquistada por seu estro: “Andante / de praias e mulheres, / nenhuma aurora / comigo velejava, / embora velejasse / mais tarde / com meus ossos”. A voz de Ulisses lamenta: “Ninguém eu sou / sem pátria / e a ela escrevo / a eternidade / em mim”. Metro breve e fôlego longo do poema encontram-se no fecho: “Ninguém / é Ulisses por acaso”.