SEMINÁRIO DE JORNALISMO E LITERATURA NA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS
PALESTRA DE JOSÉ NÊUMANNE PINTO
TERCEIRA SESSÃO
DIA 23 DE OUTUBRO DE 2004
1ª. TRANSCRIÇÃO DAS FITAS DE ÁUDIO (continuação)
FIM DO LADO A FITA 8
FITA 7 LADO B (continuação da fita 8 lado A)
Moderador:
Eu queria informar que dois dos acadêmicos aqui presentes, Arnaldo Niskier e Murilo Melo Filho, vão se retirar antes, porque vão representar essa Academia numa cerimônia de entrega de um prêmio a ABL, que vai ser feito dentro de meia hora, pela Folha Dirigida. Parabéns a essa Academia Brasileira de Letras e aos representantes que vão receber este prêmio. Muito obrigado.
Queria convidar agora, o jornalista, meu colega, só não é colega demais porque eu sou pernambucano, e entre Pernambuco e Paraíba, há umas discussões ainda não resolvidas. Poeta, sempre agitando o movimento intelectual em São Paulo.
Com a palavra, o nosso José Nêumanne.
Jornalista José Nêumanne
Bem, eu resolvi falar aqui porque as pessoas que me encontram na rua e que me vêem na televisão estranham e me acham grande, pois achavam que eu sou pequeno, só porque não tenho pescoço. E como sou um poeta menor, um escritor bissexto e um jornalista obscuro, pois todo editorialista é obscuro por oficio, não posso também sair diminuído no porte físico. Então, resolvi mostrar-lhes minha altura real. Afinal, sou um sertanejo paraibano, com 1m80cm de altura e me orgulho disso: como diz Mauro Salles, morreram pelo menos uns 200 sertanejos para eu sobreviver e ainda ficar desse tamanho.
Confesso a vocês que não preparei nada do que eu devia lhes falar, porque não consegui definir direito. Recorri à memória para ver em que determinado momento que sacanagem eu fiz com Ivan Junqueira (fui chefe dele) para ele me pôr falando aqui entre Lêdo Ivo, ele, Evanildo Bechara e Antonio Olinto. Ou pensei que podia ter cometido alguma gafe numa das festas que freqüento amiúde na casa do Mauro Salles. Então, só quero lhes dizer o seguinte: o escasso brilho da minha participação nesse seminário não é fruto de irresponsabilidade minha. Nenhum jornalista ou escritor no Brasil recusaria um convite desses. É pura irresponsabilidade dos senhores Ivan Junqueira, Mauro Salles e outros.
Quero também dizer que, como todo jornalista, sou oportunista e vou me aproveitar bastante de deixas que ouvi aqui. Já que Ivan falou de deixas! E mais: vocês todos estão autorizados a discordar de mim, porque eu não sou dono da verdade, mas um provocador e vim aqui para provocar. Provocar o mestre Lêdo Ivo, que fez uma palestra brilhante e me retirou a possibilidade de recorrer à história do jornalismo e de contar piada com manchete. E Ivan Junqueira, que fez a associação perfeita entre jornalismo e literatura. Hemingway, se não me engano, dizia que todo escritor deveria passar pela redação do jornal, mas só fica no ponto depois de sair dela redação. Vai ver que é por isso que continuo na redação do jornal e Ivan não está mais.
Então, gostaria de fazer algumas pequenas provocações, que podem até virar grandes, dependendo da opinião e das idéias que vocês tenham dos assuntos que vou tratar. Vim aqui lhes fazer uma denúncia e um apelo. A denúncia que farei é que a política, o jornalismo e até a literatura estão assassinando a língua portuguesa. Nós tivemos um presidente que, ao longo de oito anos, achava que era muito bonito e muito importante falar outras línguas. E agora nós temos um presidente que não fala outras línguas e mesmo seu português é bastante precário, o que não impede que eu tenha lido no jornal O Globo uma coluna do meu amigo, o professor de português Pasquale Cipro Neto, elogiando muito o português falado por nosso presidente. Só tenho mesmo de reconhecer é que, se realmente o português do Lula é muito precário, não é tão mais precário assim que o português praticado na imprensa brasileira. É cada vez mais depauperado o português que se imprime nos jornais e nas revistas do Brasil. Aquele exemplo que Antonio Olinto deu é extremamente caridoso e até o considero corporativista. Ele estava era defendendo os jornalistas, dando um exemplo com um erro tão pequeno, como constato diariamente lendo jornais. Sim, ao contrário de Ivan, não sou casado com uma jornalista, mas com uma médica. Só que, como ele, recebo em casa quatro jornais e leio mais dez, porque editorialista escreve muito pouco, mas lê muito. E vocês não podem imaginar como me deparo com pastéis e com erros de português dolorosos. O meu único consolo é que a literatura brasileira também não é assim muito mais generosa no trato da nossa língua materna que o jornalismo não.
Há pouco conversava com Ivan sobre a perspectiva de alguns grandes prêmios literários serem dados ainda este ano para um escritor que não escreve em português, mas numa espécie de latim vulgar, alguma coisa parecida com português. Até que dá para entender razoavelmente 20% do que ele escreve, mas certamente em vernáculo não é. Aliás, é uma prática comum na literatura brasileira hoje: é muito raro encontrar um escritor contemporâneo que escreva em português escorreito. Então, a minha provocação é a seguinte: a língua portuguesa, seja na imprensa, seja na literatura, nos meios de comunicação em geral, está em franca dissolução. Recentemente, eu vi numa novela de grande audiência no horário nobre da tevê, uma personagem , professora de ofício, confessar que tinha “baixa estima”. Ou seja, a pessoa que escreveu confundiu “auto”, do prefixo grego “de si”, com alto, uma coisa grande. Como eu, por exemplo, que sou alto, ou não sou? Então, isso é uma coisa corriqueira: nos jornais, na televisão, o português está sendo vilipendiado. Um dia desses, eu falei sobre esse assunto para uma platéia, assim como vocês, em São Paulo, e ao meu lado estava o colega Rodolfo Konder, que citou um número, que confesso que não anotei, um número “x” de línguas que desaparecem diariamente no mundo. No Brasil também desaparecem muitas línguas indígenas, está certo que são línguas que não se escrevem, não se imprimem. Este, evidentemente, não é o caso do português, que é uma língua escrita e impressa, mas eu não tenho muita certeza se o português será uma língua com uma sobrevida muito grande por causa de algumas circunstâncias específicas, uma das quais é um problema grave, que é o desprezo que nós temos pela própria língua materna. Ele pode ser expresso pelo fato de um presidente preferir falar sempre inglês ou francês, ou pela evidência de que um professor de português considera que mudar o gênero de advérbio seja uma coisa correta, desde que quem o faça seja o presidente da República. É o exemplo de como o poder político pode manipular até a gramática.
Então, gostaria de colocar para vocês, meus queridos mestres acadêmicos, a missão de tentar salvar a Língua Portuguesa. Peço vênia para citar um exemplo pessoal: sou membro do Instituto Cultural Velásquez, que é um grupo de intelectuais e empresários de São Paulo, convocados pelo governo da Espanha para estreitar a amizade e o intercâmbio cultural entre nós, brasileiros e os espanhóis. Recentemente, esse grupo foi recebido pelo Rei Juan Carlos, da Espanha, e tive a oportunidade de cumprimentá-lo pelo brilhante trabalho geopolítico que seu país vem fazendo em relação ao castelhano.
Há alguns anos, viajei pelo interior dos Estados Unidos e fiquei espantadíssimo com a freqüência com que o castelhano invade a maior potência do mundo. E isso num território onde se fala o verdadeiro esperanto contemporâneo, que é o inglês. Hoje, no Oeste americano os juizes são obrigados a recolher testemunhos em castelhano – isso está previsto na lei. E mesmo em estados do norte e do nordeste dos Estados Unidos o castelhano se faz presente. Constatei isso pessoalmente no interior de Illinois, onde andei de ônibus e as passagens de ônibus são bilíngües – em inglês e em castelhano. Enquanto isso, nós desprezamos nossa língua. Aliás, gostaria de pedir desculpas por ter sido muito duro com Lula e com Fernando Henrique, esquecendo-me do nobre par de vocês José Sarney, cultor do “portunhol”, e de Fernando Collor, autor do célebre “duela quem duela”. E há quem diga que ele costumava pedir “cueca-cuela”.
Então, cumprimentei o Rei da Espanha, porque considero que, realmente, hoje, no universo, num planeta globalizado, a língua é um elemento de domínio econômico e de dominação política da maior importância. É claro que os americanos mandam no mundo porque têm mais dinheiro, porque têm mais poderio militar, mas também assistimos a um verdadeiro massacre da cultura americana e da língua inglesa sobre todos os outros países do mundo. Em qualquer país que alguém chegar e falar inglês, qualquer um, basicamente, entende. Menos talvez em Nova Iorque, mas isso aí não pesa tanto. A verdade é que isso não acontece com o português e nós temos a triste sensação de que o português é uma língua que está desaparecendo. E está desaparecendo até nos textos literários, nos quais está sendo substituída por alguma coisa meio diluída, que eu não sei bem definir o que é. Talvez estejamos voltando às origens do galaico-português ou do latim vulgar. Está desaparecendo, principalmente, nos meios de comunicação e eu espero que a Academia, como tem entre as suas funções a guarda e a necessidade de manutenção e sobrevivência da língua, encare essa missão como uma missão difícil, uma missão de guerra, uma missão da maior importância.
Eu, pessoalmente, me coloco, ideologicamente, nessa defesa assumindo para vocês posições muito claras. Eu, por exemplo, acho que é quinta coluna quem espalha por aí que nós falamos uma língua brasileira. Eu aprendi no sertão da Paraíba uma língua chamada portuguesa, Esta língua, eu falo em Portugal e lá sou entendido. E meu neto, que também é neto de portugueses, está ouvindo essa língua da minha parte com sotaque brasileiro e da parte da mãe dele e dos avós maternos dele com sotaque português, mas é a mesma língua. Então peço desculpas a quem defende a terminologia Língua Brasileira, mas acho que, de fato, essa divisão, essa tentativa de criar uma língua própria, como se fosse uma coisa que existisse, é mais uma forma de enfraquecimento, de fragilização da nossa língua portuguesa.
Calculo que aqui nesta platéia, haja muitos estudantes universitários de Letras e de Português e alguns deles discordarão radicalmente de mim. Mas eu quero ainda defender, e com muita veemência, apesar de respeitar todas as opiniões em contrário, a língua canônica: sim, sou a favor do cânones gramaticais. Acho que uma certa mentalidade, que foi disseminada, caiu nas graças da universidade brasileira – essa de dizer que não há erro de português, que a língua correta é a língua falada pelo povo, seja qual for a língua que o povo fale – e é tida como progressista, socialista, de esquerda, antielitista, na minha opinião, perdoem-me as pessoas que discordem de mim, é, na verdade, no fundo fascista e elitista. E vou aqui tentar explicar com minha argumentação de editorialista para vocês.
Acredito que temos um enorme patrimônio impresso, guardado em bibliotecas, de uma beleza e de uma grandeza imensuráveis. O idioma português não é o mais prolífico do mundo nem foi nele que se produziu a melhor literatura, mas é uma língua que tem Camões, que tem Machado de Assis, que tem Eça de Queiroz. É uma língua que tem um patrimônio cultural e estético invejável. Então, acho que, quando se prega na universidade, como se faz no Brasil, o relaxamento em relação aos cânones gramaticais, de uma certa forma se está pregando a inacessibilidade do pobre, que não se pode instruir, a esse enorme patrimônio. Então, em nome de um certo liberalismo, de deixar esse pobre falar como ele quiser, dizer “menas” ou coisas que o valham, esta é, no fundo, uma atitude preconceituosa. Pois, em nome desse populismo, se faz, na verdade, um impedimento elitista mercê do qual a pessoa que não tem acesso à universidade também não venha a ter acesso ao patrimônio literário e lingüístico.
Não sou radical a ponto de achar que aqueles narizes de cera, a que nosso querido poeta Lêdo Ivo, meu ídolo desde criança, se referiu, sejam usados em nossa linguagem coloquial. Eu falo um português coloquial, vocês falam um português coloquial. Uma coisa diferente é quando escrevemos. Só que eu acho que a língua é um instrumento de comunicação. E, sendo a língua um instrumento de comunicação, é preciso que haja um acordo tácito entre as pessoas que se comunicam a respeito, no mínimo, de significados. O que nós vemos hoje é que cada pessoa usa a palavra com o significado que quer, e o interlocutor que se vire para entender. E há também, uma redução absurda do universo vocabular, falado e escrito. Quer dizer, até é possível reconhecer que principalmente entre os jovens haja uma informalidade maior e essa informalidade produza um certo encurtamento do universo vocabular. Mas resumir a língua inteira a cinco ou seis gírias é um empobrecimento que levará à diminuição e em última instância até ao desaparecimento dessa língua. É claro que eu não sou estúpido a ponto de dizer que a língua portuguesa vai acabar, que meu neto não vai mais falar português – ou o filho do meu neto -, mas eu percebo um abastardamento da língua e esse abastardamento está sendo endeusado, do ponto de vista político. Defendi essas idéias polêmicas numa reunião na Biblioteca Mario de Andrade e estava ao meu lado um ilustríssimo professor de português da USP, que argumentou, quando me referi ao uso da flexão do advérbio pelo presidente Lula, que tem uma predileção especial pelo inexistente advérbio “menas”, que o Conde Almeida Garrett também flexionava os advérbios. Então, a única defesa que me restou, como polemista, foi dizer que isso é provável, eu não me lembro de ter lido “menas” no Conde Almeida Garrett, mas eu não ia desmentir o professor de português. Mas eu tinha certeza de uma coisa, conhecendo Lula como conheço, e bem, desde 1975: não foi lendo Almeida Garrett que ele aprendeu a falar “menas”.
Então, essas são as provocações que eu queria pôr à discussão, porque eu não teria muito mais coisas a fazer depois da aula de história na minha profissão e que eu, comovido, ouvi ali sentado ao lado do Lêdo Ivo, na qual ele traçou em 25 minutos a história da imprensa de uma forma sintética e cheia de graça. Sou – sempre fui – admirador do Lêdo como poeta, mas jamais poderia imaginar que ele fosse um historiador da imprensa tão preciso. E nessa briga que ele arrumou aí com Ivan Junqueira, que, aliás, Ivan Junqueira arrumou com ele, a respeito do desaparecimento dos jornais, eu, como homem de Guttenberg, tenho a triste notícia a dar a meu querido amigo Ivan Junqueir: os jornais estão desaparecendo, sim. Há pesquisas cientificas demonstrando claramente o esvaziamento da imprensa e basta alguém ler os jornais brasileiros para logo perceber que eles estão piorando, lamentavelmente. E o pior é que também estão perdendo o mínimo de apelo que eles tinham, principalmente entre os mais jovens. Há estudos científicos – os americanos são muito bons nisso – que mostram o envelhecimento progressivo do leitor de jornal. A média de idade do leitor de jornal está aumentando muito, provando que Ivan e eu vamos ler jornal até a morte, mas meu neto, Pedro, dificilmente lerá. É muito provável que os jornais desapareçam e eu, como jornalista não tão antigo como Lêdo, mas da geração de Ivan, lamento muito. Ivan, aliás, mentiu, ao se definir como um jornalista bissexto, que ia e voltava: ele é um jornalista brilhante e essa página que ele citou é um trabalho no qual eu só entrei com incentivo, pois foi um trabalho dele e foi um trabalho antológico. Aconselho a todos vocês a a procurarem nos arquivos, pois se trata de uma página de grande qualidade tanto literária quanto gráfica.
Pois bem, então, nessa briga do desaparecimento do jornal, infelizmente Antonio Olinto fez a observação correta: os jornais estão desaparecendo mesmo, o fato de nós ainda lermos jornais não significa muita coisa, pois os jovens estão deixando de ler e eu não tenho muito a dizer aos jovens para que eles leiam os jornais. Bem, o fato é que eu tinha previsto falar alguma coisa sobre jornalismo cultural, mas não me resta mais tempo algum e eu vou só lhes dizer que o jornalismo cultural no Brasil se vendeu ao mercado. Então, a imprensa na qual milito – e me orgulho de ser jornalista, não sei fazer outra coisa na vida – está participando de uma forma deletéria de depauperar a língua portuguesa e até a ajudando, de forma indireta, ao deixar de promover e de levar ao leitor a informação sobre a verdadeira literatura. Hoje, apesar de alguma exceções, aliás exceções basicamente cariocas, O Prosa e Verso, de O Globo e o Idéias, do Jornal do Brasil, não há espaço para a indústria cultural editorial na imprensa brasileira. Em São Paulo, o Estado de S. Paulo tinha um suplemento cultural famoso, histórico, que desapareceu, hoje está fundido no Caderno 2, aos domingos. E o Jornal da Tarde, em cuja redação trabalho, extinguiu um suplemento que tinha grande importância na veiculação de idéias críticas, que era o Caderno Leitura, que circulava aos sábados. Hoje, nós não temos mais críticos na imprensa, o último dos críticos é Wilson Martins, que já é um homem idoso, de grande talento, de grande importância, cujo trabalho é magnífico, mas um homem idoso. Quando se extinguir Wilson Martins, infelizmente não teremos mais a prática contínua e necessária daquilo a que Ivan Junqueira se referiu, que é a crítica literária no Brasil. Tudo isso faz parte de um processo de metástase lenta e gradual dessa doença de que são acometidos os meios de comunicação e que está matando a língua portuguesa de inanição.
Então, gostaria de colocar essas questões para vocês e de pedir que todos aqui pensassem um pouco em que os cânones gramaticais continuam sendo necessários para que haja um acordo tácito mínimo de pelo menos se entender o que o outro fala. Muito obrigado!