Segundo poema, um repto de Isabel.

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Medeia aqui e agora

 

Oh, where have you been, my blue eyed son,
Where have you been, my darling young one?. (Bob Dylan, A hard rain is a gonna fall)

 

Para a neta do dr. Ageu

 

Por onde diabo é que vive
nosso filho de olho azul,
fugido de Hiroshima,
destroço de Nagasaki,
vampiro de Chernobyl?
Em que missa que rezou
nossa filhota africana,
queimada no Vietnã,
morta de fome na Rússia,
apedrejada em Coyoacán?

Por onde anda no mundo
nosso neto oriental,
que nunca brincou de pega,
jamais chupou sorvete
nem sequer rodou pião?
Sabe acaso onde está
nossa neta australiana,
que não brincou de boneca,
não pulou amarelinha
nem correu de assombração?

 

Nossa família escorreu
no vão de coxas abaixo,
no leite em pó das estradas,
no leito do coito interrompido,
no vago cosmos da vastidão.
O elo da corrente foi quebrado
naquela poça de esperma,
no óvulo abortado e expelido,
nas preliminares intermináveis e
no orgasmo oco da perdição.
E a descendência, interrompida
na chuva ácida da pílula,
no fogo fátuo da química,
na devoção ao espelho,
no altar da anticoncepção.

Nosso futuro encarnado
se ausentou sem ser notado,
faltou ao ponto marcado,
sem sequer ser anunciado
e disse adeus sem ter chegado.

 

Nosso amor estéril se basta,
não multiplica, mas cresce
na brasa acesa do encontro
e na cinza da despedida.
Como a figueira da Bíblia,
nosso desejo se nutre
das próprias flores murchas e
dos próprios frutos secos.
Comemos como convém:
não nos alimenta o maná do céu
nem o pão amassado por Satã.
Nossas mãos não balançam berços,
nossos passos não percorrem parques,
nosso cordão umbilical nos ata ao outro,
nossa paixão exclusiva não queima os demais
Estamos atados por um cabo amniótico,
como um astronauta no vazio sideral.
Nossos filhos, assassinados em teu ventre,
não estão aí a lotar creches
nem partilham a porca miséria de ter sido.

 

No entanto, fora de nós,
a humanidade aumenta
– loba faminta suja a água do planeta,
vestida em pele de ovelha tosquiada.
Olhando pra frente, caminha para trás,
verme que contamina o solo,
estrela que ilumina o céu.
Na noite dos séculos,
bebês berram nos berços,
casais babam de ternura.
E, entretanto, fora de nós,
o humano se reinventa
no sórdido bis da barbárie
e na sublime beleza renovada.
Vai faltar lugar para todos
na fila do leite e no balcão do pão:
parco será o naco de cada um.
Mas imenso será sempre
na escuridão de cometas e estrelas
o voraz buraco negro da solidão.

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José Nêumanne Pinto

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