Para ler e ouvir, um poema de José Nêumanne Pinto. “Ricordanza della mia gioventù. São Paulo, 30 de março de 2017, 88 anos de meu pai, Anchieta, se estivesse vivo, 5 anos de meu neto Giulio, de posse de meu futuro”. O poema faz parte da antologia O quanto dela trago em mim, da editora Oficina do Livro, a ser lançada no dia 9 de maio.
Ricordanza della mia gioventù
Lembro-me bem, e eu estava no cinema:
na tela o mar reproduzia aquele rito
de vem que eu vou e vai que eu fico,
espera e chegada, partida e espera.
Não, aquele não era o mar de minha infância,
pois não houve mar em minha infância:
nasci à beira de um rio seco e chucro,
que se chamava do peixe, ora vejam,
e raramente tinha algum nadando nele.
Quando o mar chegou à minha vida,
eu tinha mais de dez anos
e já mandava em mim.
Tinha deixado a casa dos meus pais
e dividia o quarto de dormir
com um magote de machos
trepados em beliches,
perdidos em longos corredores
como os do ano passado em Marienbad.
Por que diacho, então, que eu chorei?
O que produziu o sal líquido
descendo bochecha abaixo
no silêncio da sala escura
no qual não ecoava o mar,
mas a voz dos poemas
de rimas, passos e requebros
de Manuel Maria Barbosa du Bocage?
Acho que era a voz da minha mãe,
que descia feito um riacho fresco
na noite escura do sertão seco que só.
Mas minha mãe não sabia Bocage de cor.
O que me pegou no peito
e me pôs no colo
foi a voz de minha mãe semeando a treva
com a luz, a força e, sobretudo, o ritmo
de Antônio Frederico de Castro Alves.
Aquele ritmo é que me era familiar,
aquele mar de palavras
despejando frescor salgado e sagrado
das senzalas navegantes
que partiram da África
para fabricar o banzo
no outro lado do mar infame.
A voz de minha mãe
atravessava aquele pélago
e inundava o coração mudo
do menino comovido,
que aprendia ali
naquele ermo escuro e fundo
as danças e os feitiços,
o amor e o desafeto,
a paz de pasmar
e a guerra de agarrar
nas profundas do Rio do Peixe.
Naquelas noites distantes
de parentes mortos agourando
e inimigos jurados tocaiando,
minha mãe era meu escudo,
minha mãe era minha pátria,
minha mãe era a língua portuguesa.
Amei a língua por amor a ela,
venerei a poesia por venerá-la,
abracei a pátria toda
dentro de seu regaço.
No meio da noite,
passava ao largo
o doido Labrada
vindo do cabaré de Cirilo Félix,
imitando com a boca
motores de explosão dos automóveis.
E nas escadas do Capitólio
nos versos do poeta apaixonado
“lá brada César morrendo:
no pugilato tremendo
quem sempre vence é o porvir”.
Chorei o sangue do general
no escuro das noites do sertão
e no escuro das salas de cinema.
A toga furada do senador,
a causa perdida do imperador
e o menino ferido de vida
das batalhas por travar
e dos sonhos por realizar.
Djalma Limongi Batista nem sabe
que o menino velho chorou
lágrimas de um rio do peixe
que nunca teve um cardume
pra chamar de seu.
E Dona Mundica, então,
que não está mais aqui
para me dar de mamar
ou beber o leite de vaca
na temperatura certa
e sempre muito doce,
que é a sanha do diabetes
que herdei de um primo dela,
Anchieta Pinto, meu pai.
Lembro-me bem, se me lembro,
lenço enxugando o rosto úmido,
cantando para mim mesmo
uma cantiga muito antiga de ninar,
descobri que naquelas noites velhas
de quase mais nem me lembrar
aprendi que viver é amar
e o resto é só morrer aos pedaços.
José Nêumanne Pinto
Para ouvir o poema:
- Clique no ícone de play abaixo
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2. Acesse o SoundCloud
https://soundcloud.com/jose-neumanne-pinto/ricordanza
Ricordanza della mia gioventù
A minha ama-de-leite Guilhermina
Furtava as moedas que o Doutor me dava.
Sinhá-Mocinha, minha Mãe, ralhava…
Via naquilo a minha própria ruína!
Minha ama, então, hipócrita, afetava
Susceptibilidades de menina:
“- Não, não fora ela!” – E maldizia a sina,
Que ela absolutamente não furtava.
Vejo, entretanto, agora, em minha cama,
Que a mim somente cabe o furto feito…
Tu só furtaste a moeda, o ouro que brilha…
Furtaste a moeda só, mas eu, minha ama,
Eu furtei mais, porque furtei o peito
Que dava leite para a tua filha!
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O soneto Ricordanza della mia gioventú, de Augusto dos Anjos.
Voz: Othon Bastos.