O que podem ter a ver os ilustríssimos senhores lentes da secular Faculdade de Direito da USP no Largo de São Francisco e os jovens mal saídos da adolescência dos bairros mais violentos da Grande São Paulo? Por incrível que pareça, é possível encontrar nesses elementos díspares e aparentemente antípodas uma característica comum: o condão de reinjetar a esperança nas veias esclerosadas de uma Nação entorpecida pelo desânimo, saqueada pela violência e refém da própria indiferença.
Não é nada agradável a sensação de que em temos quantitativos a Nação brasileira transmite a incômoda impressão de que está pouco ligando para o espetáculo de desfaçatez e falta de caráter dado pelas elites dirigentes, das quais o representante máximo é o presidente da República. Egresso das camadas populares, identificado com o cidadão comum, Luiz Inácio Lula da Silva prepara-se este ano para se afirmar como o mais importante líder da História republicana. Afinal, o estancieiro Getúlio Vargas, até agora tido como o tal, atirou no próprio coração para não ter de enfrentar um escândalo de corrupção que, apesar de apelidado de “mar de lama”, comparado com os atuais, não passava de uma “poça”. Enquanto isso, o peão de fábrica, que migrou para São Paulo num pau-de-arara e terminou andando de carruagem ao lado da rainha Elizabeth II, da Inglaterra, está prestes a receber consagradora votação na eleição em que a sociedade decidirá quem será seu sucessor, surfando no que se pode definir, sem exagero, como sendo um “oceano de fezes”.
Dificilmente haverá um brasileiro capaz de acreditar que verdadeiramente o presidente não sabia o que faziam seus mais chegados companheiros de partido e subordinados no próprio governo. No entanto, também não será fácil encontrar um cidadão pobre neste País que não esteja satisfeito com seu governo e, por isso mesmo, deixe de votar nele.
É nesse ambiente de desleixo moral e cívico que se destaca uma solenidade como aquela em que a nata da intelligentsia jurídica nacional festejou no auditório da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco os 95 anos do professor Miguel Reale. Tércio Sampaio Ferraz, Celso Lafer e Miguel Reale Jr., além do próprio homenageado, o intelectual brasileiro número um enquanto viveu (ele morreria logo depois da homenagem), fizeram discursos baseados em princípios e conceitos que parecem extintos. Era a manifestação de uma Nação completamente diferente desse pântano sem escrúpulos em que a politicagem transformou o País oficial, que contaminou definitivamente também o Brasil real.
Semelhante impressão terá quem freqüentar as reuniões dos Círculos de Leitura do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial em Higienópolis, na Capital paulista. Sob a batuta do jornalista nova-iorquino Norman Gall e da psicanalista barcelonesa Catalina Pagés, jovens estudantes de escolas públicas da periferia mais violenta da Grande São Paulo discutem preciosidades da cultura ocidental, como O banquete, do filósofo grego Platão, e A divina comédia, do poeta italiano Dante Alighieri.
O trabalho desses brasileiros, nascidos na Catalunha, nos EUA, em Diadema ou Jardim Ângela, junta-se ao heroísmo anônimo de 180 milhões de brasileiros que permanecem honestos, apesar de todas as dificuldades e de se saberem reféns da delinqüência organizada, rubra de sangue ou de colarinho branco, e das tentações para também se tornarem soldados dessas hordas. Junto com o caseiro Francenildo Santos Costa, que não teve medo de enfrentar o todo-poderoso da Economia federal Antônio Palocci; o procurador-geral da República, Antônio Fernando de Souza, que denunciou os crimes da quadrilha de 40 manda-chuvas da política; da presidenta do STF, Ellen Gracie, que aos poucos parece recuperar a autonomia (e o pudor) do Judiciário; e dos agentes da lei e paulistanos inocentes que tombaram no banho de sangue do PCC, os luminares do saber jurídico das Arcadas do velho convento franciscano e os meninos da periferia de São Paulo que se interessam por literatura, filosofia e ética merecem, sem ironia alguma, a definição de salvadores da Pátria.
© revista eletrônica Pronto. Junho, 2006