Alfredo Ricardo do Nascimento, vulgo Zé do Norte, era sertanejo de Cajazeiras, no alto sertão paraibano. Sua cidade fica perto de Orós, Ceará, terra de Raimundo Fagner, e de Brejo do Cruz, no limite da Paraíba com o Rio Grande do Norte, cidade natal de Zé Ramalho e da cantora Socorro Lira. Os xarás se conheceram e chegaram a provar uns chopes muito bem tirados, acompanhados de tremoços, num restaurante alemão simpático da Lapa carioca, o Bar Brasil. A morena Socorro, dona de uma voz melodiosa e cristalina, é de outro tempo, outra geração, outro feitio. Mas agora ela e ele estão reunidos no CD Lua Bonita, em que a cantora registrou 11 canções clássicas da Música Popular Brasileira, todas com autoria atribuída a Zé do Norte, nem todas de fato compostas por ele. Na mais famosa, Mulher rendeira, Socorro recorreu a um artifício esperto: deu a cantiga de ninar como de domínio público (DP), com adaptação de quem se dizia o autor.
De certa forma, a cantora incorporou o espírito malandro do homenageado. Este, sim, apesar de egresso das brenhas do interior nordestino, aprendeu todos os truques da malandragem carioca vivendo ao lado de Cartola, Carlos Cachaça e outros compositores de renome do morro da Mangueira, no Rio. No convívio com esses bambas da Estação Primeira, ele deve ter ouvido a sentença atribuída a Sinhô, da nata dos sambistas dos anos 30, a Época de Ouro da música brasileira: “samba é como passarinho, está no ar, é de quem pegar”. E tratou de registrar como da autoria dele canções que ouviu a mãe no sertão ou algum companheiro de caserna afinado em Fortaleza cantar ou, quem sabe, em terreiros de macumba no Rio mesmo. Mas nem depois de haver tomado todas, jamais revelou ao amigo mais fiel que músicas ele de fato compôs e de quais ele assumiu a autoria. Típico personagem de Rio, Zona Norte, clássico do Cinema Novo, de Nelson Pereira dos Santos, ele não foi nisso original. Patativa do Assaré não acusava Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, de se impor como parceiro em canções que não compusera? E o maestro Heitor Villa Lobos não adaptou temas de DP (como Ó, mana, deixa eu ir, também do folclore paraibano) nas Bachianas?
Certo é que Mulher rendeira já era cantada no sertão antes de Zé do Norte ser dado como gente na então capital federal. Há quem diga que seu autor é Virgolino Ferreira da Silva, o temido cangaceiro Lampião. Mas é mais provável que tenha sido adaptada e recebido acréscimos ao longo do tempo. E não é de todo improvável que algumas estrofes tenham sido criadas por aquele que a adotaria como obra dele.
De qualquer maneira, a cantiga foi o ponto de partida da carreira artística que catapultou Alfredo Ricardo do Nascimento para a fama como Zé do Norte. Boa praça, com muita verve, ele se tinha tornado amigo de intelectuais cariocas. Cantando uma embolada que fez imenso sucesso no espetáculo Aldeia Portuguesa, aproximou-se de Joracy Camargo, letrista musical e autor do maior êxito de bilheteria do teatro na virada dos anos 40 para os 50: Deus lhe pague, protagonizado por Procópio Ferreira.
Pelas mãos de outra escritora e jornalista renomada, a cearense Rachel de Queiroz, foi indicado para a equipe da produção cinematográfica de O cangaceiro, dirigida pelo paulista Lima Barreto, como consultor de prosódia sertaneja. Terminou sendo o “autor” da trilha sonora, interpretada por Vanja Orico, também atriz e filha de um político renomado da época, Osvaldo Orico. O sucesso da fita em Cannes e nas bilheterias e da trilha elevou Zé do Norte ao Olimpo do cancioneiro popular nacional.
Vanja, assim como Elba Ramalho, Geraldinho Azevedo, Sandra Belê e Zé Paulo Medeiros, tem participação especial no belíssimo CD de Socorro Lira. Divide a interpretação de Sodade, meu bem, sodade, uma obra-prima do lirismo musical sertanejo que, graças ao talento e à esperteza de Zé do Norte, se imortalizou. E, mercê da sensibilidade de Socorro Lira, encanta ouvintes de hoje, como antes já fizera.
Morto aos 71 anos, em 1979, Alfredo Ricardo do Nascimento levou para o túmulo o segredo do que seu heterônimo Zé do Norte realmente compôs ou do que retirou do limbo do anonimato nas brenhas para projetar na glória das execuções no rádio e na televisão pelo mundão além das porteiras do sertão. Socorro Lira, com a ajuda do pesquisador Assis Ângelo, outro paraibano, resgatou a obra e a saga de seu conterrâneo, mostrando que cada canção, por ele composta ou trazida a lume, vale esse preito à alegria, à malícia e à criatividade do sertanejo que, escolado nas manhas de sobreviver, fez-se malandro carioca de escol, chapéu de feltro e cachecol.
Que mania é essa, sujeito?
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