Prêmio Senador José Ermírio de Moraes (Discurso)

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 Discurso proferido por José Nêumanne Pinto,  na entrega do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes, da Academia Brasileira de Letras, ao romance do ano, O Silêncio do Delator, em 25 de agosto de 2005

A primeira coisa que me ocorre lhes dizer, amigas e amigos meus, cuja presença aqui me prestigia e desvanece, é o primeiro verso de um soneto – o único poema que sei de cor. E nem meu é! Mas, se querem saber, é como se fosse, tantos anos o tenho repetido, tantas vezes dele me tenho lembrado e tantas noites são aquelas em que ele tem percutido dentro de minha cabeça como um mantra, a oração escandida por um anjo. “Meu coração tem catedrais imensas.” É isso mesmo: a abertura de “Vandalismo”, de Augusto dos Anjos, nascido na Paraíba como eu e morto em Minas, como tantos ancestrais de muitos dos que aqui pacientemente me escutam. Este verso me encanta pelo ritmo das sílabas, pela música da linguagem, pela força da imagem. É grandioso e é singelo, ao mesmo tempo, como devem ser as obras-primas: sólido e delicado, másculo e meigo, etéreo e prático. (…)

Muitos podem ser os motivos para que com ele abra este agradecimento feito na condição que ainda me espanta de autor do romance O silêncio do delator, laureado pelos membros desta Casa, que Machado de Assis, do Cosme Velho, e Joaquim Nabuco, de Massangana, fundaram e cujo espírito todos os acadêmicos presentes e ausentes têm renovado, em benefício da cultura nacional, em seu ameno e profícuo convívio em torno da mesa de chá. Mas gostaria de destacar uma só, a mais simples, a mais direta, a mais prosaica de todas: a correspondência com o sentimento de humildade e reconhecimento, de gratidão e despojamento com que aqui venho me investir desta honraria, a maior que poderia ser dada a um imodesto operário da língua, seu súdito vaidoso, embora nem por isso infiel. Pois reivindico minha condição de fiel para lhes garantir que me dirijo a cada um dos acadêmicos e convidados aqui presentes com a humildade de um peregrino em Meca, o ânimo caridoso do soldado romano que umedeceu os lábios secos de Jesus na cruz e o estoicismo de Gandhi e Martin Luther King acolhendo as balas que lhes ceifaram a vida. Entro nesta sala tirando os sapatos para me sentar à mesa, à moda japonesa. Como um romeiro sobe as escadas de pedra de Monte Santo, perto de Canudos, no sertão da Bahia, lacerando as rótulas. Sou um cruzado da palavra, um guerreiro do vernáculo e venho aqui para convocá-los à luta, luta renhida, heterônimo da vida no canto do guerreiro indígena do poema de Gonçalves Dias.

O brilho dos lustres deste salão nobre lembra o dos pirilampos que, na noite escura do sertão de minha infância, se embriagavam com o ritmo marinho dos versos do poeta baiano Antônio Frederico de Castro Alves, ditos de cor por minha mãe, Mundica Ferreira Pinto, que aqui se encontra – e para cá veio para que nunca me esqueça de que o vernáculo em que se lavra a poesia não é o dialeto pátrio, mas, sim, a língua materna. Lembro-me também de que chorei por minha profana ignorância e pelo tropeço inesperado no óbvio quando ouvi os versos do português Joaquim Maria Du Bocage (…) num filme do brasileiro Djalma Limonge Batista, encontrando neles o mesmo ritmo do mar da Bahia e de Goa, onde o caolho Luiz Vaz se banhava. E me recordo ainda da fé religiosa no verbo original que me foi incutida no colégio pelas professoras Maria Argentina Brasileiro e Francisca Neuma Fechine Borges. Encantei-me com a amargura do seleiro José Amaro, inventado por José Lins do Rego, e me apaixonei pelos olhos claros da sertaneja Soledade, criada por José Américo de Almeida, de cuja amizade privei. Li-os à chama da lamparina queimando querosene e à custa de uma miopia galopante que me acompanha desde a tenra infância, de cujas noites vultos e letras surgiam mais nítidos do que quando era dia e, então, o sol do semi-árido lhes torrava os contornos, ofuscando-me a retina.

Venho de muito longe e da aldeia onde nasci trago notícia da preciosidade desta língua cuja sobrevivência em liberdade decente nos cabe a todos assegurar. E é este o requerimento que aqui subscrevo. Valho-me desta ocasião única para fazer um apelo: não deixemos esta nossa língua portuguesa morrer! Jamais permitamos que o idioma que as minas de Itabira forjaram no gauche Carlos e que as mocinhas de Évora usavam para encantar o “foca” Eça de Queiroz se dissolva na lama pútrida das sarjetas da mentira e da corrupção impunes. Que mais lhes poderia pedir eu, devedor de sua graça e escravo de sua mercê, que não fosse isso, minhas senhoras, meus senhores, amigas e amigos? Peço-lhes nada mais que isto, pois: que usem ainda mais e sempre que lhes for possível a ingente relevância da instituição que são. E, assim, munidos da força da credibilidade desta organização, que se impõe acima dos poderes da República e além dos caprichos do mercado, possam evitar que uns e outros desavisados roubem do povo o que ainda lhe resta de dignidade e nobreza: a possibilidade de serem os cidadãos brasileiros justos e solidários, comunicando-se em frases simples, diretas e verdadeiras. A Academia Brasileira de Letras paira sobre a areia movediça moral em que afunda o País oficial com a autoridade moral da obra real de cada um dos acadêmicos, vivos e mortos. E somente a autoridade moral de uma associação como esta, que honra seus membros e por estes é honrada, poderá restaurar a confiança dos tempos em que à palavra dada correspondia fiança de alta valia e um fio de bigode bastava como aval.

Muito esta Casa, que ora acolhe este trabalhador da notícia e garimpeiro da verdade na mentira da ficção, ainda pode – e deve – fazer para impedir que o massacre cotidiano na boa-fé da palavra empenhada, seja pelas mentiras deslavadas pregadas nas comissões parlamentares de inquérito ou pela mistificação desembestada da ilusão publicitária, seja pelo emprego desregrado do gerúndio ou pela adoção de barbarismos em nome de um falso populismo, no fundo elitista, possa instalar no lugar de uma civilização que um dia foi letrada uma estúpida algaravia de bárbaros. Quem sabe, alguns dos nobres guardiães dos tesouros espirituais amealhados nas pensões de Porto Alegre ou nos bas fonds do Recife Velho poderão me recriminar pela ousadia deste pedido. Peço-lhes vênia, e mais um tempinho de atenção, antes de logo, prometo, concluir. (…)

O silêncio do delator, que mereceu a honra desta premiação, é um projeto literário no qual reuni todos os valores que aqui venho defender. Relato dos malogros e êxitos de minha geração , este romance não faz nenhuma concessão a modismos ideológicos ou mercadológicos. Ao contrário: elaborado ao longo de vinte anos, seu texto aborda com franqueza, mas também com verve e leveza, a experiência de vida e reflete a visão do autor, sem autocomiseração nem leniência com as facilidades exibidas na feira de vaidades de nossa sociedade de massas e consumo.

Este prêmio, que meu livro ganhou, leva o nome de um José como eu, também nordestino – o Senador José Ermírio de Moraes nasceu em Nazaré da Mata , Pernambuco. Ele dá um exemplo fecundo, porque provém de uma empresa produtiva, que acumula a fortuna na persistência do trabalho, e não no perfume enganoso da usura aventureira. (…) Que sirva agora também de pretexto e ponto de partida para que esta Casa seja cada vez mais e sempre a trincheira de uma luta sem tréguas contra a mentira oportunista, a falsificação comercial e o vilipêndio da língua materna pelos mercadores do óbvio nas facilidades do consumismo comodista. Bastará esta luz, emanada dos becos imortalizados por Manuel Bandeira e das conversas de tropeiros reproduzidas no registro inovador do doutor Joca, lá de Cordisburgo, norte de Minas (portanto, também Nordeste, pois não?), para que as trevas da barbárie que nos ameaçam se dissipem no brilho do legado ético de Celso Furtado e Rachel de Queiroz, Euclydes da Cunha e Graciliano Ramos. Legado ético de que me orgulho ter recebido de meu pai, José de Anchieta Pinto, honrado servidor público, no total e verdadeiro significado destes vocábulos.

Eu sei, e vocês sabem, que não será nada fácil resgatar o dialeto em que se comunicavam os “bambas” da sinuca de João Antônio. Este idioma em que Maneco Antônio de Almeida narrou as malandragens de Leonardo Pataca nas ruas já então sujas e ruidosas da Corte Imperial do Rio de Janeiro. E o bruxo do Cosme Velho bordou as sutilezas do ciúme de Bentinho. Esta língua que sibila como vento na palha dos canaviais e entre as cruzes dos cemitérios pernambucanos de João Cabral de Melo Neto e requebra nas ancas da Nega Fulô, de Jorge de Lima. E que o embolador Dedé da Mulatinha entortava e enriquecia em seus improvisos, feitos ao ritmo do ganzá, na feira-livre de Campina Grande, na época em que este beneficiário da generosa hospitalidade de vocês se iniciava no jornalismo, na literatura e no amor. (…)

Hoje, nossa democracia representativa verga sob o peso da esperteza, que quando é demais, como gostava de afirmar Tancredo Neves, engole o esperto – e é só isso que ora está ocorrendo no Brasil, ilustres e pacientes ouvintes. Infelizmente entre nós são muito poucas, raríssimas mesmo, as entidades que dispõem de autoridade, competência e sensibilidade para comandar esta cruzada contra a vulgaridade do lenocínio político, a transformar o Estado brasileiro num prostíbulo público e esta última flor do Lácio, muito bela e nada inculta, do poeta Olavo Bilac em biombo de solecismos desqualificantes e valhacouto da falsidade e da mistificação rasteiras. Cabe a esta Casa sediar a resistência dos homens e mulheres de valor já nela abrigados e obter a adesão das brasileiras e brasileiros de boa vontade que ainda não sucumbiram ao populismo brega e ao deslumbramento pela cloaca chique do capitalismo selvagem das butiques pretensamente elegantes. Cabe-lhes organizar a luta para tentar pôr fim a este exílio que amargamos em território nosso – esta pátria de Fernando Pessoa, Lobo Antunes, Mia Couto, da virgem Iracema, de José de Alencar , e na qual Riobaldo amou Diadorim.

Vamos salvar a língua portuguesa antes que esta vulgarização criminosa arraste para o oblívio o opróbrio dos que dela escarnecem e, juntamente com estes, esmigalhe também as jóias de rara beleza, nela lapidadas – orgulho de nossos patrícios e patrimônio de nossos descendentes.

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