Por que Lula ainda está forte

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A oposição se ilude quando acha que pode ganhar a guerra sem baixas

Somente uma pessoa bastante ingênua e inteiramente jejuna em política brasileira tem o direito de se surpreender com as últimas pesquisas de opinião pública que detectam o fim da queda vertiginosa da popularidade do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. E até a recuperação (embora tímida) rumo a índices obtidos antes da divulgação do escândalo de corrupção envolvendo figurões do governo e do partido no poder. Afinal, esse periódico compulsar do ânimo popular reflete apenas o que a lógica plana dos fatos noticiados nos últimos dias autoriza a qualquer bom entendedor para quem meia palavra baste.

Em primeiro lugar, a reconstrução do templo petista, que tem motivado comemorações efusivas intramuros nos corredores palacianos (festejos, aliás, no mínimo precoces) deve-se ao êxito da aplicação pelo presidente da República e seus áulicos da velha tática criada por Josef Goebbels, ministro nazista de propaganda, e aplicada à exaustão pelo velho ex-inimigo (e ex-aliado) do PT Paulo Maluf. A tática é a seguinte: se a verdade incomoda, minta. Mas minta sempre com convicção, sem pestanejar, sem piscar, sem se deixar tolher por nenhum tipo de escrúpulo! Creia na própria farsa e os outros lhe darão crédito. Para isso, Lula e os seus nem precisaram ser muito coerentes. Eles adotaram uma trilha errática, que foi e veio entre pedidos de desculpas e acusações de golpismo. Mas em nenhum momento foram pilhados com um passo que fosse em falso. O presidente foi traído, foi apunhalado pelas costas, ignorou o óbvio e pôs em público a carapuça do néscio, mas nunca se deu ao luxo de identificar um dos traidores nem chegou a fornecer a marca do punhal com que o teriam esfaqueado à sorrelfa.
É claro que isso não bastou. As circunstâncias também têm ajudado nesse projeto da reconstrução. Para que essa tática tivesse sucesso, era preciso de certa forma “combinar com os russos”, como teria questionado Mané Garrincha ao técnico Vicente Feola no vestiário antes da partida contra os soviéticos na Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Pois acreditem se quiserem: a oposição fez exatamente o que Lula poderia esperar que ela faria. No dia em que o mar de lama atingiu o lago do Planalto, com o depoimento do publicitário baiano Duda Mendonça à CPI dos Correios, o presidente da OAB, Roberto Busato, teve a proposta de impeachment do presidente tolhida pelo insistente (e até drámático) apelo de dois senadores: Arthur Virgílio (PSDB-AM) e Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA). A tática explícita seria levar o chefe do governo a “sangrar até a eleição”, daqui a nove meses, mas talvez esta má idéia não tenha sido a única inspiração. Tucanos e pefelistas queriam ganhar a guerra sem baixas e não admitiam (nem admitem até hoje) ceder os mandatos de seus próprios usuários do valerioduto – o ex-presidente nacional do PSDB, senador Eduardo Azeredo (MG), e o deputado federal Roberto Brant (PFL-MG). Este é um engano semelhante ao de Bush, ao acreditar que bastava derrubar Saddam Hussein e voltar para casa assoviando Glória, glória, aleluia. Ninguém jamais ganhou guerra alguma sem perder vidas e os intelectuais tucanos e pragmáticos liberais não poderiam ter faltado a essa aula elementar nos cursos de história que freqüentaram.
A arrogância tucana se manifesta na loquacidade sem razão do ex-presidente Fernando Henrique, que não disputará o pleito, mas parece disposto a competir com seu sucessor em matéria de horas de palanque. Foi-lhe atribuída a frase fatal, segundo a qual “Alckmin é melhor candidato, mas Serra será melhor presidente”. Como o provável autor da patacoada não se candidatará a nada e candidatos são suas vítimas, é provável que ela entre para a história como a pérola máxima do fogo amigo. Ainda que esta tenha sido apenas uma barriga da imprensa, convém observar que os efeitos da incontinência verbal do professor sejam tão danosos a ambos quanto tal palpite infeliz.
A diferença entre Lula e seus adversários continua sendo o espírito pragmático do presidente na leitura correta (com o perdão da impropriedade da metáfora aplicada em alguém tão pouco afeito às letras) que ele faz da autêntica natureza da alma do homem brasileiro. Lula bajula o povo nos palanques, mas sabe que a grande maioria de nossos patrícios tem uma noção de ética prática mais próxima da dele próprio e de companheiros de viagem como José Dirceu, Delúbio Soares e José Genoino que de Aristóteles, Espinosa ou Kant. Se a classe média anda muito indignada com a descoberta de que o PT não diferia em nada dos adversários tradicionais na luta política, o lumpen proletariado em cujo seio o presidente reconquista sua popularidade parece se convencer que esses adversários são iguaizinhos ao PT. Pode parecer uma amarga ironia da História, mas é fato que o partido de Lula, após ter vencido a última eleição apostando na diferença tentará ganhar a próxima provando que os outros já praticaram as malfeitorias das quais agora o acusam.
Enquanto Duda Mendonça não for convocado a depor sobre os novos dados que virão dos EUA para a CPI dos Correios e os oposicionistas do Congresso não se aplicarem na investigação da lista tida como falsa da contribuição de Furnas aos cofres das campanhas de seus próceres, será difícil negar esse truísmo. Resta, é claro, a questão de saber se o povo que Lula afaga e os tucanos e pefelistas não reconhecem se deixará engabelar por essa conversa da impossibilidade de separar o joio do trigo da farinha do mesmo saco do qual se nutrem nossos homens públicos. Mas para ganhar uma guerra como vai ser a eleição de outubro cada coisa terá de ser tratada a seu tempo. Até as urnas muita água ainda vai rolar debaixo da ponte. Não é impossível que apareçam novas maracutais do PT, mas terá a oposição esgotado seu acervo de lambanças?
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde e autor de O silêncio do delator, prêmio Senador José Ermírio de Morais, da Academia Brasileira de Letras, em 2005. Clique na capa para ter acesso à livraria virtual.

© O Estado de São Paulo

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