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MINHA TIA, NOSSA GENEALOGIA
Noite destas sonhei
com tia Maria Elisa,
sua cabeça, bandeira da paz,
suas bochechas de Nhá Benta
de Zé Bento Monteiro Lobato,
seu sorriso, promessa de bonança.
É uma lembrança feliz
de minha infância no ermo.
O calor dos abraços de titia,
casada com nosso tio Dedé,
também tio dela por parte de pai
e meu tio-avô por parte dos pais,
meio irmão de meu avô paterno,
João Evangelista, pai de meu pai,
um gaiato infrene, nada solene.
E pleno irmão de minha avó materna.
Ou seja, titia era sobrinha e cunhada
de minha avó Quinou,
que dizia que este neto era arteiro,
um menino muito amostrado,
mas, no fundo, uma boa alma,
um generoso filho de Deus.
Deus te ouça, minha avó.
A “casa da fazenda”,
como assim era chamada
e a Deus era servida,
foi o reino de titia,
seu castelo sem fada.
Meus tios, sobrinhos dela,
proseavam à luz do luar.
O candeeiro só iluminava
o documento papal
que lhes abençoava a união,
firmado por um tal de Pio 12,
emoldurado e dependurado
em lugar de honra na parede,
considerado insigne parente:
a sagração do sangue comum,
no qual a saúde era apenas
uma indulgência nada plena.
E quando uma voz, no escuro,
contava que alguém envelhecera,
meu tio Quincas, historiador,
fazendo a própria genealogia,
solteiro paquerando prima,
com quem faria prole
para os galhos do arbusto,
dizia que velho mesmo era o pai
e, mais ainda, o avô. E eram, ora!
Tio Dedé, mãos calosas da lida,
prosa aguda de sabe-tudo da vida,
era os quatro braços do casal,
cão de guarda da rainha,
sobrinha, mulher, dona e mãe,
naquelas noites que o tempo não guardou.
Terezinha foi minha madrinha,
levou-me nos braços
e me apresentou à pia batismal.
Geraldo e Geraldina, gêmeos homônimos
do santo sempre presente, o tempo todo,
são meus primos em primeiro grau,
porque titia era irmã de papai
e, em segundo ou sei lá que grau,
porque meu tio era irmão de vovó.
E meio irmão de vovô!
Sonhei um sonho morno
na cozinha da casa grande
e no sonho estava Luíza,
uma moradora abobada,
silenciosa e simpática,
que estava ali só pra ajudar,
fazendo um pouco de tudo.
E também estava Maristela,
a prima que foi guardada
para cuidar de minha bisavó,
que chamávamos de Mãe Inda,
apelido e rima de Laurinda,
que meu bisavô Alexandre
conhecera na porta do mano Vicente:
um bebê abandonado por alguém.
Minha bisavó nunca saiu da rede,
mas não sonhei com nossas conversas
sobre fartura nos tempos do coroné.
Sonhei no calor da cozinha,
apesar de sombria,
iluminada pelo fogo
que aquecia o texto
sobre cujas panelas
tia Elisa mexia a sopa
e fazia doce de caju
espesso, escuro e único.
A mãe de Terezinha era dama de salão
e na cozinha seu aconchego
produzia afeto e boa comida.
Um veneno para diabéticos
como ela, meu pai, nossos avós e eu.
Sua voz, o doce mais doce,
mais doce do que o de batata doce,
contudo, não tinha venenos.
E chamava o duas vezes sobrinho de filho.
No sonho não éramos diabéticos
e nos fartávamos do aconchego de titia
e de seus doces caseiros
com sabor de vida e saudade.
JOSÉ NÊUMANNE PINTO