Não é justo confundir direito de defesa com gozo de impunidade
A Operação Hurricane é um feito notável da Polícia Federal (PF) na gestão Lula. Nunca a rede policial havia apanhado antes (e disso os chefes devem orgulhar-se muito de seus subordinados) peixes tão gordos: desembargadores, juiz, delegados de polícia, advogados e parte significativa da blindadíssima cúpula da contravenção no Rio. Agora, sim, é possível dizer que foi andado um passo importante para dar à sociedade pacífica e trabalhadora a esperança de que os agentes da lei conseguirão estancar a ofensiva do crime organizado, que apavora, humilha e submete a Nação indefesa. Parte importante da explicação para o impasse permanente da insegurança pública generalizada é a impunidade dos delinqüentes. Esta só pode ser gozada da forma como o é neste país pela desfaçatez com que parcela não majoritária, mas significativa (e decisiva), dos policiais, advogados, promotores e juízes, pagos pela sociedade para fazer respeitar a lei, vende as próprias honra e consciência.
Os presos, delegados da própria PF, juiz, advogados – entre os quais o irmão de um membro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) –, desembargadores e bicheiros, são uma parcela ínfima dessa elite de colarinho branco e taça de champanha, que, à sombra, acoberta a atividade criminosa à luz do Sol de bandidos notórios. Mas talvez não venha a ser ilusória a fé de que a detenção deles – e de outros mais que ainda virão a sê-lo – represente o fio de uma meada que, puxado com coragem e cuidado, pode desmantelar um esquema que tem mantido os cidadãos de bem atrás das grades de suas janelas e liberado a ação das hordas dos fora-da-lei. Qualquer brasileiro com o mínimo de informação já sabia que o crime só compensa entre nós porque cidadãos instalados no topo do poder republicano e protegidos por essa condição usam sua força e seu prestígio para permitir que o benefício do lucro do crime seja maior que o custo da punição do bandido.
A rendição dos cidadãos honestos aos imperativos da desordem pública, tornada condição de sobrevivência no Brasil, é o pior dos subprodutos da promiscuidade existente entre as bandas (talvez nem cheguem à metade os gomos doentes da laranja) podres da polícia, da Justiça, do Ministério Público e dos três Poderes da República e os chefões das quadrilhas em atividade. A Operação Hurricane presta um grande serviço à sociedade exibindo os laços imundos que transformam servidores da lei em serviçais daqueles que a violam em busca do lucro fácil e do luxo farto. Nas duas toneladas de documentos e materiais apreendidos pelos policiais – entre estes discos rígidos de computador e agendas –, certamente a PF poderá garimpar evidências notórias da verdadeira natureza dos negócios ligados ao jogo no Brasil. Com isso, desabarão os castelos de areia da mitologia politicamente esperta dos que defendem a legalização dos bingos a pretexto de manterem os empregos que estes geram, argumento que pouco diferiria de quem pregasse o fim à repressão ao tráfico de entorpecentes para evitar que os servos dos traficantes perdessem sua renda.
A falácia social assemelha-se em hipocrisia ao discurso monocórdio de quem abusa da caradura ao comparar a ação policial à repressão ilegítima da época da ditadura. O pleno direito de defesa é uma garantia cidadã da qual nenhuma democracia de respeito deve abrir mão. Mas o abuso desse direito por chicanas jurídicas é uma ameaça permanente à sociedade obreira e ordeira, pois as brechas legais do arsenal de instrumentos usados para esse fim terminam por solidificar flagrantes injustiças sociais. Neste País, o pleno acesso à defesa garante a impunidade de ricos e poderosos, mas o pobretão não tem o direito sequer de gozar a liberdade findo o cumprimento da pena a que foi condenado, se não puder pagar a um advogado para redigir seu alvará de soltura. Qualquer um tem o direito de apelar para o discurso que lhes aprouver. Assiste-nos o direito, contudo, de desprezar este acervo retórico que insulta nossa mínima inteligência comum.
Este mais recente êxito da Polícia Federal é uma excelente oportunidade para levar o Congresso Nacional a debater os dispositivos de nossos códigos processuais que permitem a transformação de direito de defesa em gozo de impunidade mercê de prazos e delongas fixados para averiguar, condenar e executar as penas de quem viola a lei. Isso, é claro, sem menosprezar a necessidade de identificar e corrigir erros eventuais nem a garantia dos direitos individuais dos acusados. Evidência desta necessidade é o fato de os bicheiros agora presos já terem sido condenados pela então juíza, deputada Denise Frossard, e mostrarem, após o cumprimento de penas rápidas, capacidade de recuperar o tempo e a fortuna perdidos, mudando de atividade e obtendo com esta lucros suficientes para financiar o próprio luxo e pagar caro pela própria impunidade.
Este sucesso também torna possível que a cidadania questione as verdadeiras causas do malogro da mesma corporação na investigação de casos muito mais simples que, misteriosamente, estão emperrados. Por que a PF, cuja rede é capaz de suportar o peso de tantos tubarões, não consegue caracterizar a culpa de bagres menores, como Waldomiro Diniz, réu confesso de um delito filmado, gravado e transmitido para todo o País, produzindo um inquérito após outro, considerados todos ineptos pelo Ministério Público? Por que até agora não chegaram à Justiça provas que a levassem a processar os carregadores de maleta na tal República de Ribeirão Preto nem os responsáveis pela quebra ilícita e nauseabunda do sigilo bancário do caseiro Francenildo?
O sossego dos brasileiros que dão duro no batente para comer sua farinha, pagam impostos em dia e obedecem às leis da República depende de como a autoridade se disporá a puxar o fio desta meada e da forma como ela responderá a estas questões todas.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 16 de abril de 2007.