Presidente perde autoridade sobre cargo e ganha voto sem garantia de fidelidade
A cobrança feita pela presidente Dilma Rousseff a seu ministro da Justiça, José Eduardo Martins Cardozo, por não ter sido avisada previamente da operação da Polícia Federal (PF) que levou a 35 prisões no Ministério do Turismo, a começar pelo número dois da pasta, foi imprópria, injusta e equivocada. É de admirar que Sua Excelência, que faz tanta praça de seu passado libertário, tenha ressuscitado uma prática administrativa comum na República Velha dos coronéis da Guarda Nacional, quando se media o poder de um chefe político por sua capacidade de nomear e demitir o chefe da polícia e o diretor do grupo escolar. O Brasil não é mais uma sociedade rural semiescravagista, mas uma República com um sistema institucional desenhado numa Constituição dita “cidadã” por seus redatores e um sistema financeiro que não fica a dever mesmo aos centros do contemporâneo capitalismo movido à velocidade de tempo real da cibernética.
No Estado Democrático de Direito, não é cabível chefe de governo se imiscuir em rotina policial, assunto do qual devem dar conta os aparelhos de força legítima que funcionam e são regulados por instrumentos de Estado – como é o caso da PF, que não se pode subordinar a interesses subalternos das alianças políticas. É pouco provável que tenha passado pela cabeça da maior autoridade da República a intenção de determinar qualquer tipo de obstrução à investigação policial de ilícitos de enorme gravidade, de vez que tratam da malversação de recursos públicos. Mas é lícito pedir vênia para registrar a inexistência de qualquer outra motivação para Sua Excelência reivindicar prévio conhecimento por ela de procedimentos da alçada dos agentes federais. Dilma queria o quê? Exigir todo o rigor dos investigadores das fraudes? Bem, ou isso seria absolutamente desnecessário – e até inócuo – ou, então, a superiora em hierarquia dos agentes da lei estaria manifestando, se não descrença, no mínimo, dúvidas quanto à capacidade que eles teriam de cumprir sua missão sem necessidade de estímulo ou repreensão da chefia. Ou a PF sabe que não pode condescender com delinquentes indicados pelo chefão de um partido grande da base aliada ou, então, estaríamos sob uma crise institucional de fato, em que responsáveis pelo cumprimento da lei não podem fazê-lo.
Tendo sido sufragada pela maioria do eleitorado para comandar a República e influir na vida de todos os brasileiros, Dilma deveria, em vez de exigir tomar conhecimento de detalhes rotineiros do trabalho dos cidadãos aos quais o Estado atribui tanto poder e responsabilidade, voltar sua inquietação para outra direção. A divulgação de seu descontentamento com o ministro da Justiça por ele não a haver informado a respeito da iminência de diligências pode até ter dado a outros subordinados dela que estejam dilapidando o patrimônio público posto sob sua guarda e responsabilidade o sinal de que, afinal de contas, apesar das frequentes dispensas de funcionários denunciados nos últimos dias, ela não está assim tão empenhada em exigir deles o irrestrito cumprimento da lei.
Para reanimar a autoestima da cidadania, ameaçada pelo frequente noticiário dos atos lesivos de servidores públicos que usam prerrogativas de seus cargos para empobrecer a Nação e ficar mais ricos, a presidente – que me perdoe a ousadia da sugestão – deveria fazer justamente o contrário do que fez. Como sigilo absoluto tem sempre de cercar operações policiais do gênero, já que quanto mais gente souber, maiores serão as chances de os suspeitos escaparem do alcance do braço da lei, ela deveria sufocar o lampejo de amor próprio ferido por não ter recebido a informação privilegiada e, ato contínuo, chamar a atenção do subordinado por ter sido informada da operação na mesma hora em que o caipira de Goiás ou o agente da Bolsa de São Paulo dela tiveram ciência.
De cobrança – e esta, sim, dura, implacável até – da presidente são merecedores colegas de ministério de Martins Cardozo que têm causado frequentes dissabores à chefe por serem lenientes com subalternos que passeiam por dispositivos do Código Penal com a mesma desenvoltura com que dispõem do Orçamento da União com liberalidade para se beneficiar. O pito no titular da pasta da Justiça pela quebra do princípio do privilégio que a autoridade deve ter em relação à iniciativa rotineira de uma autoridade policial que deveria ser pública, mas não governamental, destoou da imagem de justiceira que a presidente resolveu adotar desde que pôs em risco a paz nos arraiais governistas com as caneladas que deu nos parceiros do PR expelidos do feudo dos Transportes.
Os marqueteiros do Planalto devem ter tomado um baita susto quando souberam que a popularidade da presidente desabou oito pontos de março para cá, de acordo com a pesquisa que o Ibope fez para a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Mas se eles esperavam que a reação pavloviana da número um da República a levaria aos píncaros da glória estatística do prestígio lulista, estavam contando com o ovo posto antes de ele ter sido concebido. A pré-racionalidade do povão, diagnosticada há tempos pelo jornalista Mauro Guimarães, não deve ser desprezada: o cidadão comum também sabe que a ocasião faz o novo ladrão quando o antigo é surpreendido e exonerado. É melhor demitir o corrupto, como ela fez, do que mantê-lo furtando no lugar. Mas isso não altera o fundamental: mantida a estrutura que permite o furto, o novo larápio nela será engendrado.
Governabilidade significa, ensinava Lula, dividir as lentilhas do poder com os donos dos votos no Congresso. Ao trocar cargo por voto, nesse loteamento, o presidente perde autoridade sobre o ocupante do cargo e não ganha garantia da fidelidade do dono do voto. Não é fácil decepar esse nó górdio, mas Dilma se depara com um dilema: ou rompe com isso ou passará o mandato inteiro demitindo suspeitos e pondo novos em seu lugar.