O mandato não é do partido nem do parlamentar, mas do eleitor
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidirá hoje se vale mesmo a interpretação adotada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) segundo a qual parlamentar que trocar de partido ao longo do exercício de seu mandato o perde, pois este pertence ao partido, e não a ele. Trata-se de uma decisão histórica, pois por ela o Poder Judiciário poderá se antecipar ao Legislativo numa questão capital, que é a da fidelidade partidária, primeiro ponto de qualquer reforma política ideal e principal causa real do fracasso de todas as mudanças propostas para as leis que tratam da organização dos partidos e da realização das eleições.
Se, como esperado, a Corte Suprema confirmar que o mandato não pertence ao eleito, haverá rebuliço de monta no Parlamento, pois cerca de 50 de seus membros correm o risco de ser cassados pelo fato de terem sido eleitos por uma legenda e de tê-la trocado por outra em plena vigência da legislatura. Os trânsfugas alegarão, não inteiramente sem razão, que o eleitor brasileiro não vota em partidos e, geralmente, nem em idéias, mas, sim, em pessoas. Então, uma decisão que obrigar o representante a ficar no partido pelo qual foi eleito trairia a secular tradição da escolha pessoal. Na verdade, contudo, esse argumento é falacioso. Pois ele parte do pressuposto equivocado de que o voto é uma espécie de carta-branca dada pelo cidadão ao parlamentar. E este, de posse do mandato que lhe é concedido, pode vendê-lo, alugá-lo, emprestá-lo ou doá-lo, como tem sido hábito desde sempre no Brasil – e mais ainda sob a vigência da Constituição de 1988. Esta instituiu uma espécie de parlamentarismo de resultados e de ocasião, no qual o legislador abre mão de sua prerrogativa de debater e votar as leis e normas que regem o destino da cidadania. E a substitui pela capacidade de barganhar vantagens pessoais ou para seu grupo em troca da transferência da carta-branca que lhe é dada pelo eleitor para o usuário da chave do cofre do Tesouro Nacional.
O grupo que comanda as finanças nacionais e governa por medidas provisórias, nem sempre necessárias ou urgentes, como ficou comprovado na retirada de várias delas em troca de uma tramitação mais rápida da tal Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF), aceita a chantagem sem choro nem ranger de dentes. Pois põe e dispõe sobre quem se diz representante da sociedade, em troca da distribuição de cargos e benesses da máquina pública, que termina, como sempre, custando muito ao contribuinte, mas nem tanto aos donos do poder. Se houver necessidade de criar mais cabides para pendurar os paletós dos senhores deputados, senadores, chefes partidários e seus apaniguados e cabos eleitorais, a burocracia federal pode provê-los com facilidade, contando para tanto com a cumplicidade dos colegas eleitos pelo povo para legislar. E sempre haverá a possibilidade de criar uma taxa, um imposto, uma contribuição ou ainda aumentar uma alíquota já existente para equilibrar a contabilidade federal, a fim de evitar quaisquer problemas de caixa.
O senador Wellington Salgado (PMDB-MG), suplente do ministro das Comunicações, Hélio Costa, e denodado membro da tropa de choque que defende com unhas e dentes o mandato do presidente Renan Calheiros (PMDB-AL), acaba de dar uma contribuição ao folclore da chantagem generalizada, ao reconhecer publicamente que seus companheiros de bancada querem apenas um “chinelinho” melhor. Para tanto contam com a enorme capacidade que o presidente da República tem de submeter o dicionário a seus desígnios. Enfurecido com a participação do PMDB na vitória de Pirro oposicionista da derrubada do castelo de sonhos do ministro Mangabeira Unger, Lula disse na semana passada que não “barganha”, mas “faz acordo”, tratando sinônimos como se antônimos fossem.
Pois, então, após ter lavado a alma da Nação ao aceitar, por unanimidade de votos menos um, abrir processo contra os 40 “mensaleiros” por formação de quadrilha em gabinetes oficiais, alguns dos quais bem próximos do presidencial, no Planalto, o Supremo pode agora repetir o feito. Para tanto basta não ceder à tentação de contemporizar, mais antiga ainda que a do voto personalista. A essência do poder na democracia é a vontade do representado, não as prerrogativas que esta possa dar ao representante. A fidelidade partidária não é uma fórmula mágica que moralizará da noite para o dia o conspurcado ambiente político nacional. Mas é o purgante que precisa ser ministrado para deter a decomposição orgânica da vergonha na gestão dos negócios públicos no Brasil, ilustrada pela demolição do castelo de areia entregue à administração de Mangabeira Unger. E pelo inchaço do Partido da República (PR), usado, como o PL, o PPS e outros no episódio da compra de adesão, inadequadamente batizado de “mensalão”, para garantir aprovação automática dos caprichos de el rey em Casas que em teoria deveriam ser submetidas à vontade soberana dos súditos.
A secretaria do faz-de-conta confiada ao ex-crítico rendido à pompa do pudê, como, de resto, muitos já o fizeram, é tão ridícula como quem foi escolhido para comandá-la. Mais ridículas, contudo, são as hordas brancaleônicas da oposição que, a reboque do fisiologismo do PMDB, a extinguiram para fazerem o povo imaginar que existe algum tipo de resistência que pode ser levada a sério às tentações totalitárias de Sua Majestade Metalurgíssima. Se a pasta de carochinha do professor Unger é uma concessão ao espírito carnavalesco de nossa República, a extinção dela, a serviço dos apetite pantagruélicos do general Renan e seus comandados, é uma piada de mau gosto que não deve ser contada nem em botequins de má fama. Ao STF caberá pô-la no devido lugar: o lixo da História.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 3 de outubro de 2007, p. A2, Opinião
O STF contra a falta de compustura
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