Será que Lula se queixa de “golpismo” de olho na reeleição?
“Estão agindo no Brasil como a Fedecámaras agiu na Venezuela, sem respeitar o jogo da democracia”, reclamou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva em longa entrevista exclusiva a Mino Carta, dono do semanário Carta Capital. A frase motivou manchetes de jornal e diatribes da oposição, com justas razões. Primeiramente, por ser falsa em relação à atuação oposicionista no Brasil, que está longe de repetir os frêmitos do próprio PT, tanto na campanha pelo impeachment de Collor quanto na pregação sistemática e subversiva do “fora FHC”. E também é leviana por abordar, de forma ligeira e sem conhecimento de causa, problemas de economia interna de um país vizinho.
Ela é também incoerente, pois a vítima da malograda tentativa de golpe do empresariado local e grande amigo do presidente brasileiro, seu colega venezuelano Hugo Chávez, acaba de sair de uma eleição, à qual compareceu apenas um quarto dos eleitores habilitados a votar, com a totalidade dos membros do Congresso, um feito que mataria de inveja o ditador paraguaio Alfredo Stroessner. Afinal, este, a despeito da repressão violenta e do domínio completo do Partido Colorado sobre a política de seu país, jamais conseguiu sufrágio unânime da população. Agora com o Congresso à sua mercê, depois de haver ocupado o Poder Judiciário, o “neocaudilho” instalado no Palácio de Miraflores, em Caracas, poderá, enfim, comprar o sonho da tal “revolução bolivariana” a peso de petrodólares.
Houvesse nosso presidente freqüentado uma boa aula de História no ginásio, teria percebido que seu amigo não segue os passos do ídolo de ambos Fidel Castro, mas de outro tirano do século 20, o medíocre pintor e cabo austríaco Adolf Hitler. O sonho da insurreição “foquista” descrito nos textos do francês Régis Debray e tentado nas escaramuças do argentino Ernesto “Che” Guevara foi soterrado na Venezuela desde que teve fim a aventura do guerrilheiro Douglas Bravo. Militar golpista malogrado, Chávez ocupa o poder e esmaga a oposição contando com a cúmplice indiferença de um mundo mais interessado em lhe vender mercadorias (e armas) que no progressivo extermínio de uma democracia construída a duras penas por intelectuais como Rómulo Betancur e desmoralizada pela operação canhestra de uma burguesia corrupta. E o uso freqüente dos termos de comparação com um país que em nada é comparável com o Brasil , sob qualquer padrão que se adote, torna Lula suspeito de sonhar com a repetição aqui dos devaneios absolutistas de seu colega. Tal perspectiva, por mais remota que pareça, termina sendo mais relevante que a grosseira intervenção na soberania de um parceiro ou a acusação descabida contra os adversários internos.
Quanto à primeira questão, convém aduzir que, montado num subsolo supervalorizado no mercado internacional, guindado a líder emergente da esquerda mundial e tratado a pão-de-ló pelo amigo, Chávez não terá por que se queixar da intromissão indevida de Lula em assuntos de sua jurisdição. A oligarquia empresarial caraquenha e os oponentes políticos do presidente, que lhe acabam de entregar, de mão beijada, a fábrica de leis que submeterá o país a seu bel-prazer, poderão espernear, mas não encontrarão platéia capaz de perturbar o sono do ocupante do principal dormitório do Palácio da Alvorada.
Em relação à oposição local, tudo o que lhe cabe fazer já foi feito e nada disso terá o condão de prejudicar o bom humor do chefe do governo nem de interromper a caminhada de volta ao poder que ele empreende, com persistência e desfaçatez, desde o dia em que deste se apossou. Impedido ele não deverá ser, não só por dispor da garantia contra surpresas do gênero, mercê da lealdade de Aldo Rebelo , Renan Calheiros e Nelson Jobim, presidentes dos Poderes aptos a apeá-lo da Presidência, mas também por faltar disposição a seus adversários para um ataque contra o cumprimento integral de seu mandato. À exceção de um grupo de juristas quixotescos, ninguém conta no Brasil com o impeachment legal, que seria o “golpe” denunciado por Sua Excelência a ser dado por aquela elite que engoliu o sapo com barba e tudo, usando a metáfora do engenheiro Leonel Brizola. Seja porque PSDB e PFL preferem deixar o presidente sangrando no posto na esperança de lançá-lo fora nas urnas, seja por haver um “acordão” pelo qual um lado faria vista grossa aos pecados cabeludos do oposto, o mandato de Lula, atualmente, está sob ameaça tão grande quanto estariam a permanência de Bento XVI no comando da Igreja Católica ou a hegemonia ianque sobre a Terra.
De fato, tucanos e pefelistas nada têm que ver com as agruras do PT e do governo, vítimas dos próprios quadros ou de aliados corruptos, que, por sinal, até hoje gozam de ampla, geral e irrestrita impunidade, e por mera conivência de companheiros poderosos. Nem conseguem sequer cobrar esclarecimentos definitivos sobre as suspeitas em torno do desempenho do ministro da Fazenda, Antônio Palocci, na prefeitura de Ribeirão Preto, uma situação, no mínimo, esdrúxula, pois, se há alguém numa democracia de quem se deve exigir que seja e pareça honesto, a exemplo do que ocorria com a mulher de César, é o guardião da chave do cofre dos recursos da União. No entanto, está o País inteiro a conviver com um ministro da Fazenda suspeito, desde que seu ex-assessor Rogério Buratti delatou aos promotores como a propina de um fornecedor teria chegado aos cofres petistas, sob a guarda do sindicalista goiano Delúbio Soares, que, aliás, desde a Antiguidade bíblica, é o único bode expiatório nunca sacrificado. Será que os encarregados da expiação não suportariam o clamor de seu berro?
E se Lula “segreda” a jornalistas amigos essas falsas queixas na esperança de que, por fazê-lo de vítima, elas ainda lhe possam render uns votinhos? Duvidar quem há de?
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e autor de O silêncio do delator, romance ganhador do Prêmio Senador José Ermírio de Morais, da Academia Brasileira de Letras,como melhor livro de 2004.