Estado é modesto com quem ensina e pródigo em gastos com casta política
A carta do professor Marco Antônio Nunes, de Pindamonhangaba, publicada em 9 de abril no Fórum dos Leitores, nesta página A2, sob o título O povo paga, resume os males do Brasil de hoje como no passado resumia o slogan de Macunaíma: “Muita saúva e pouca saúde os males do Brasil são.” Ele escreveu: “A filha do senador gastou em ligações de celular, durante alguns dias de passeio pelo México, R$ 14,7 mil, a mesma importância que ganhei durante todo o ano de 2008 como professor aposentado do Estado de São Paulo, após 30 anos de magistério.”
Difícil encontrar exemplo melhor do contraste fatídico de nossa história nacional da infâmia: de um lado, a modéstia (melhor dizer miséria) com que o Estado brasileiro remunera os profissionais responsáveis pelo maior patrimônio de uma comunidade na sociedade da informação: a educação. Do outro, os privilégios com que se refestela a casta política dirigente, em especial a que participa das decisões do Poder tido como popular por excelência, o Legislativo, que reúne os representantes da cidadania.
Esta é a curta e grossa história de uma injustiça que se encerra aí, pelo menos do ponto de vista do signatário da carta e de seus colegas de ofício. Professores são fruto da precariedade da educação neste país desde a própria infância, durante a qual são vitimados pelos defeitos sistêmicos de uma escolaridade deficiente: aprenderam pouco nas escolas que frequentaram e ganham pouco para transmitir o pouco que sabem nos estabelecimentos em que são empregados. No meio do caminho, não são treinados nem estimulados.
Do lado abastado, contudo, o episódio tem desdobramentos. Tião Viana não é um qualquer, mas um senador. A palavra que lhe define o ofício vem da latina senior, que significa mais velho. Não conota idade provecta, mas condição respeitável. Os mais velhos mereciam respeito nas tribos primitivas por causa de sua experiência, o que os tornava capazes de aconselhar os mais jovens – seu dever era evitar que as gerações inexperientes repetissem os erros deles. O Senado romano reunia os patrícios mais respeitáveis para conduzir os negócios republicanos, ou seja, da coisa pública. Nas democracias de poder tripartite e representação bicameral, como pretende ser a nossa, os senadores são representantes das unidades federativas, os Estados. Misturam-se, no modelo imitado do sistema bicameral adotado pelos Pais Fundadores da Revolução Americana por nossos constitucionalistas de antanho, o mando romano e a estirpe nobre dos barões britânicos. Pode-se argumentar que, já entre os romanos, nem sempre a respeitabilidade era sinônimo de superioridade, como o demonstram conspirações, caso da que terminou por abater Júlio César sob a estátua de Pompeu, à entrada do edifício onde se reuniam os senadores, frequentado por serpentes afiadoras de punhais. E que o sangue azul dos lordes ingleses não garante sua nobreza de atitudes, não sendo a Câmara de Lordes, assim como o Senado americano, um convento habitado por freirinhas virtuosas, como lembrou anteontem o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, referindo-se à nossa República cá.
Isso não quer dizer, contudo, que a lenda segundo a qual não existe pecado no lado de baixo da linha do Equador, corrente desde a Renascença, permita um acréscimo de letras capaz de transformar o que não é convento num conventículo, sinônimo pouco empregado de prostíbulo. A imagem é pesada demais, é certo, mas a verdade é que, como Catilina, o político romano, seus colegas de ofício no Brasil contemporâneo têm abusado demais da paciência dos cidadãos que lhes sustentam os luxos e caprichos sem receber em troca o exemplo de decência e austeridade que de todos eles é lícito esperar. O senador Tião Vianna (PT-AC), por exemplo, não tem o couro cabeludo ornado por cãs que permitam classificá-lo com sênior (mais velho), mas é um senador tido como respeitável. Quando enfrentou José Sarney, a velha raposa do Maranhão, Amapá e adjacências, aparentava representar as forças do Bem contra as hordas do Mal. Não hesitou, contudo, em emprestar o telefone móvel com conta paga pelo contribuinte à filha, em seu passeio turístico pelo México.
Da viagem de 20 dias resultou uma conta de R$ 14,7 mil, equivalentes aos 13 salários pagos pelo Estado ao professor veterano no ano passado inteiro. A conta passaria em branco se não fosse a desídia provocada pela cizânia: adversários da pretensão presidencial do acreano fizeram a notícia vazar para a imprensa, que a divulgou, cumprindo seu dever – embora disso discordem os presidentes do próprio Senado, José Sarney (PMDB-AP), e da Câmara, Michel Temer (PMDB-SP). Apanhado em flagrante delito, o protagonista do caso infame comportou-se como se espera de um político brasileiro contemporâneo, não como teria de fazer um “varão de Plutarco”, denominação de quem conquista o respeito pelo mérito: jurou que nunca havia emprestado antes seu celular a ninguém e disse que só o fez por “instinto paternal”. Melhor pai teria sido se não houvesse emprestado, como nunca fizera antes, o telefone de conta pública à filha, presenteando-a com um aparelho particular.
Assim, teria evitado protagonizar um episódio condenável e não seria flagrado em concessão de privilégio a parente, que os cardeais de antanho mais atribuíam a sobrinhos que a filhos (nepotismo vem de nepos, sobrinho do Papa). O senador pagou a despesa, mas não se livrou do mico. Seus colegas agiram como comparsas: não poderiam condená-lo, pois em 2008 gastaram R$ 8 milhões em contas telefônicas pagas pelo público, o que representa a média de R$ 6 mil por mês para cada. E mandaram investigar o responsável pelo vazamento em mais uma característica doentia de nossas instituições, esta de que não há crime pior que a indiscrição.
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 15 de abril de 2009, p.A2