Os nobres ideais que se tornam tiranias abjetas resistem à morte
O escritor russo Alexander Soljenítsin, falecido no domingo aos 89 anos, não tinha uma obra de leitura agradável. No entanto, ninguém contestou a concessão do Prêmio Nobel de Literatura pela Academia Sueca em 1970. Como o checo Franz Kafka, cujo sobrenome se tornou substantivo comum para definir o absurdo da burocracia, e o austríaco Sigmund Freud, que ganhou fama popular de ser capaz de explicar tudo – a ponto de ser citado pelo presidente Lula, cujo apreço pela leitura não é dos maiores –, o título de seu maior livro, Arquipélago Gulag, passou a ser no mundo inteiro o símbolo dos horrores da ditadura stalinista em sua pátria. Nela expôs ao mundo as clínicas psiquiátricas em que os tiranos soviéticos internavam seus dissidentes, à semelhança do que fizera seu genial patrício Fiodor Dostoievski, em Recordações da casa dos mortos, retratando os campos de concentração dos czares absolutistas do século 19, antecessores em tudo da brutalidade comunista.
A obra de Soljenítsin chegou ao Ocidente em condições bem diferentes das enfrentadas por pioneiros como o russo nascido em Bruxelas (Bélgica) Victor Serge, o romeno Panait Istrati e o grego Nikos Katzanzakis. Desembarcado em Petrogrado em fevereiro de 1917, bolchevique de primeira água, Serge vislumbrou antes de todos o ovo da serpente do terror stalinista, quando ainda era um burocrata importante do regime soviético no Komintern (versão comunista da Internacional Socialista), em Leningrado. Salvo na undécima hora do expurgo do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), no qual o tirano georgiano executou todos os antigos camaradas que pudessem representar algum risco para seu poder pessoal e absolutista, Serge escreveu em francês escorreito, praticamente sua língua materna, um dos textos mais belos e pungentes sobre a ilusão revolucionária que incendiou o século 20, Memórias de um revolucionário. Istrati, autor de uma obra-prima do romance da Europa na primeira metade do século passado, Kira Kyralina, também lavrado na língua de Romain Rolland, o socialista que salvou a pele dos dois das garras do secretário-geral do PCUS, teve a oportunidade de narrar os horrores do Grande Terror (o massacre à bala ou pela fome de milhões de camponeses russos) num diário importante e pouco conhecido, Vers une autre flame (Rumo a uma outra chama). Ele e Nikos Katzanzakis, célebre no planeta por dois romances tornados sucessos cinematográficos, Zorba, o grego e A última tentação de Cristo, testemunharam pessoalmente o massacre e tiveram a sorte de escapar com vida às garras de Beria, o esbirro de Stalin, que alcançavam o mundo inteiro.
Os depoimentos desses pioneiros foram soterrados sob uma avalanche ideológica que ganhou foros de verdade absoluta depois da saga da vitória do Exército Vermelho em Stalingrado, fundamental para a derrota nazista na 2ª Guerra Mundial, e, sobretudo, na guerra fria, quando foi nutrida pelo ódio ao imperialismo ianque. Intelectuais venerados, como o filósofo francês Jean-Paul Sartre, tornavam sagrada a brutalidade de assassinos como Stalin e o chinês Mao Tsé-tung, reproduzindo a versão calhorda de que suas vítimas inocentes, crucificadas pela ousadia de reivindicar liberdade, não passavam de lacaios do capitalismo. Nem a denúncia dos crimes de Stalin por seu sucessor, o ucraniano Nikita Kruchev, no 20º Congresso do PCUS, em 1956, foi capaz de dissipar a cortina de fumaça que impedia a visão da evidência de que Stalin era um criminoso tão execrável quanto o austríaco Adolf Hitler, que ele ajudou o Ocidente a derrotar.
O argelino Albert Camus, o mais jovem vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, morreu sem ter tido reconhecida a sua superioridade moral sobre o ex-amigo Sartre, por ter compreendido logo a extensão da mentira comunista. A consagração dada pela massa que compareceu ao enterro deste seu desafeto foi bem o símbolo dessa ilusão, que Soljenítsin desmascarou de forma implacável. Serge intuiu a presença do ovo da serpente ainda nos anos da construção do “socialismo num só país”. Istrati e Katzanzakis viram nas estepes devassadas pela fome e pelo fogo o ovo se partir. E, pan-eslavista e pio cristão ortodoxo como o maior de todos os seus colegas, Dostoievski, Solnejítsin testemunhou a serpente em movimento e narrou a burocrática rotina de sua brutalidade.
Ao contrário de Serge, que morreu do coração pobre e desconhecido, aos 57 anos, num táxi na Cidade do México, a milhares de quilômetros da pátria, também a do socialismo num só país do maior inimigo dos dois, Stalin, Soljenítsin chegou aos 89 anos consagrado profissionalmente. E, realizado como cidadão, por ter assistido ao desabamento do império cujos pés de aço ajudou a dissolver com o ácido da verdade literária, morreu na capital russa por excelência e também sede da religião da qual foi fiel fervoroso, Moscou, berço de Dostoievski. A exemplo dos czares, cujos delitos o autor de Crime e castigo denunciou, Stalin foi destronado do panteão dos heróis e passou para a vala incomum dos inimigos do gênero humano.
Mas isso não significa que a serpente esteja morta e enterrada. Como o cadáver de Lenin, embalsamado e exposto anos a fio na Praça Vermelha, lá em Moscou, os românticos ideais revolucionários que geram as tiranias mais abjetas continuam a embalar os corações e as mentes de muita gente que ambiciona ou que chegou ao poder político. O flerte, politicamente correto na aparência, com o peronismo na Argentina e o tal do bolivarianismo de Chávez, Morales e Correa pode até ser ridículo. Mas nem por isso é um sintoma desprezível de que a denúncia da existência do Mal maior não bastou para exorcizá-lo de vez. Seja, pois, a memória do que Dostoievski, Serge, Istrati, Katzanzakis, Camus e Soljenítsin contaram o antídoto contra este veneno.
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© O Estado de S. Paulo, quarta-feira, 06 de agosto de 2008, p. A2