Toda biografia é um retrato. Nem todas as biografias, porém, radiografam as entranhas. E quase nenhuma biografia perscruta o retratado com um telescópio, para entendê-lo na vida e no mundo.
Este livro tenta tudo isso. Com a agilidade do repórter e com a sensibilidade do poeta que é, José Nêumanne Pinto conta aqui o que conhece e o que viu de Luiz Inácio da Silva, indo ao fundo de coisas que ninguém contou e que tornaram possível o nascimento de Lula dirigente sindical e líder político. Como grande retrato, mostra luz e sombra. O sertanejo criado no ABC paulista aparece em todas as contradições que marcam sua vida – desde as duas datas de nascimento (a oficial e a real) até os dualismos e paradoxos do reinado presidencial, em que teve os votos e aplausos dos pobres para proteger e mimar ricos banqueiros e grandes empresas.
Mais do que a análise do personagem, aqui se revelam detalhes des-conhecidos ou ocultos de sua vida. Aqui está a reunião em que um emissá-rio do general Golbery do Couto e Silva, fundador do SNI, vai a São Paulo relatar a Lula (em plena ditadura) os planos de “abertura política” do gene-ral João Figueiredo, e o jovem líder sindical lhe responde, com desdém, que não está interessado nisso, mas “apenas no direito de greve”.
Além de contar dos caminhos tortuosos e cheios de lama trilhados por Lula no poder, o livro penetra na sua capacidade de fingir que ignora os males e só sabe do bem. E faz entender como (na crista da corrupção do “mensalão”) ele se transforma de presidente quase deposto em 2005 ao ree-leito com folga em 2006, como se nada tivesse ocorrido.
Aqui está o prestidigitador da palavra, que assimila em minutos as noções daquilo que ignora e as lança em público como criação própria, sem que se perceba que vomita algo que recém ingeriu ou bebeu, e que não é dele.
Pode-se divergir de muitas conclusões de José Nêumanne, mas até na divergência elas lançam luz sobre o homem que se gaba de não ter curso algum, como se ignorar fosse virtude a exibir, não carência a redimir.
Este livro redime a figura de Lula da Silva da visão grandiloquente que lhe dá a propaganda e da sua contrapartida – a visão pequena que faz dele um pigmeu aventureiro e triunfante entre os velhos gigantes-pigmeus da política.
Neste livro de retratos sucessivos, Nêumanne é antes de tudo um re-tratista: como um telescópio, a lente grande-angular abarca a totalidade, para descer às minúcias que só o microscópio capta.
Por isso, aqui, a luz provoca tanta sombra.
Flávio Tavares