O Papa e o povo: Um encontro profético

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O brasileiro tem fome de fé e quer que o Bem sempre vença o Mal

Nesta sua primeira visita ao Brasil, o papa Bento XVI deixou um perfume não completamente surpreendente, mas algo inesperado, de calor e simpatia. Mesmo sem o carisma de seu antecessor, o comunicativo polonês João Paulo II, o teólogo conservador alemão deu um show de empatia com o caloroso povo brasileiro, cativando até os não-católicos que acompanharam suas prédicas contra traficantes, corruptos e os males do hedonismo em nossa violenta sociedade consumista de massas.
Talvez seja precipitado atribuir tal êxito à natureza de seu discurso contra o aborto, os preservativos e o divórcio. Por mais católica e conservadora que seja grande parte do povo brasileiro, dificilmente todos os milhões de devotos que o aplaudiram e se emocionaram com ele coconcordam com suas idéias de devolver à Igreja Romana velhos cânones abandonados depois do Concílio Vaticano II, realizado sob a égide de João XXIII. Certo é que Sua Santidade patrocinou um grande feito de relações públicas ao canonizar Frei Galvão, o primeiro santo nascido no país de população mais católica do planeta. Mas, apesar do notório apelo popular do religioso canonizado, também não seria o caso de considerá-lo o único responsável pela mobilização popular, sob chuva e sob sol, durante todos os encontros do pastor com seu rebanho brasileiro.
Também não foi inteiramente surpreendente, mas inesperada, a insensibilidade do governo brasileiro em relação a este ponto especifico. Notório comunicador, capaz de entender, ouvir e falar com seu povo como nenhum político o fizera antes na História, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva perdeu uma excelente chance de surfar na onda da canonização de Frei Galvão. E preferiu reprisar, em seus pronunciamentos ou nas conversas com o ilustre visitante, seus temas favoritos: a solidariedade aos excluídos da África e da América Latina e os programas assistencialistas que promove, com o carro do Fome Zero à frente dos bois. Por mais que essa retórica se aproxime da caridade cristã e da linha política da Igreja da Teologia da Libertação, pós-Medellín, tais temas não são obviamente os favoritos do visitante nem das multidões que o ouviram e seguiram por onde passou.
Sua Excelência foi também extremamente infeliz quando resolveu teorizar de improviso, ao comentar, com o Sumo Pontífice ainda em território nacional, que o Estado deve ser leigo e a Igreja, social. Desde a Revolução Francesa e, em nosso caso específico, após a questão religiosa no Segundo Império no Brasil, não mais se aceita, como se exigia antes, a espúria submissão do Estado à tutela religiosa. Nisso Lula está coberto de razão e ninguém lha pode negar, nem mesmo o visitante, que, aliás, deu instruções claríssimas aos subordinados para que se afastem da luta partidária. Mas esta lhe falta quando ele prega a politização do apostolado, ignorando a célebre prédica evngélica do próprio Cristo, ao determinar aos discípulos que dêem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Ao reivindicar a laicização do Estado, ele exigiu do visitante e seus subordinados que não interfiram nos negócios públicos. Isso é aceitável, embora inoportuno. Mas, ao cobrar a adesão dos evangelizadores ao “social” – e particularmente ao que ele e seus seguidores consideram “social” –, foi, mais que descortês, intrometido, pois se atribuiu o poder de árbitro temporal de temas teológicos.
Tanto ao não compreender o entusiasmo popular pela canonização do patrício quanto ao produzir essa patacoada teológica, o presidente da Republica mostrou-se fora de sintonia com a vontade da população brasileira, católica ou não. Esta manifestou nas ruas, mais que adesão aos apelos fundamentalistas de seu máximo pastor ou ao oportunismo ideológico do governante em busca de base evangélica para os próprios propósitos políticos, que rejeita maciçamente o hedonismo sem freios reinante na sociedade globalizada contemporânea e o particular destino manifesto atribuído a nosso caráter nacional de buscar levar vantagem em tudo como norma de vida. As multidões que se comoveram com o papa e o comoveram mostraram ter uma imensa fome de fé e uma grande demanda de bondade: só querem que, no final das contas, o Bem vença o Mal.
O espetacular sucesso popular obtido por Sua Santidade em território nacional pode até não garantir à Igreja que ele comanda sucesso no desafio que, segundo os jornais do mundo inteiro, ela buscou superar na visita pastoral. Somente o tempo dirá se essa passagem reduzirá o implacável avanço pentecostal sobre as hostes católicas nos últimos tempos entre nós, calculado pelos especialistas em um ponto porcentual por ano. Essa evasão de fiéis da tradição herdada de nossos ancestrais se deve muito mais a questões de cidadania do que propriamente à fé e a convicções religiosas. Os pregadores das confissões ditas evangélicas têm conseguido êxito, principalmente, porque sua vasta clientela se tem sentido há muito tempo excluída dos ofícios católicos, mas não no sentido dado à palavra pelos bispos da Teologia da Libertação ou pelos prosélitos petistas. A distância imperial mantida pelos curas em relação ao chamado povo de Deus chegou a tal grau que este passou a se sentir expulso da comunidade católica.
O teólogo conservador Joseph Ratzinger combateu, desde sempre, os enganos da politização que os seguidores de Medellín incorporaram aos sermões das missas de domingo. Mas também repetiu aqui o engano inverso de imaginar que a porta de saída só dá para o claustro ou a sacristia. No Brasil, o papa Bento XVI foi profético ao atrair suas ovelhas para um santo familiar e ao prometer saciar-lhes a fome de fé. Resta-lhe agora ouvir corretamente o que os aplausos e as lágrimas das massas também tinham a lhe profetizar.

 

© O Estado de S. Paulo, sexta-feira, 18 de maio de 2007, p. A2

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José Nêumanne Pinto

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