O legado de Jair, segundo Gilmar

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José Nêumanne Pinto

O “bamba” que manobra cordéis para inocentar multicondenado na mais alta corte de Justiça confessa que conspira contra o inimigo comum com o presidente da República para lhe tirar pedra do sapato

Num dia incerto, e agora sabido, o presidente da República, Jair Bolsonaro, disse ao ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes: “Olha, cometemos muitos erros e entre eles está ter nomeado Sergio Moro. Se tivéssemos um ano de experiência antes, talvez não tivéssemos feito isso”. O togado respondeu: “Não, presidente. Entre os seus legados está ter nomeado Sergio Moro ministro da Justiça e depois tê-lo devolvido para o nada”. Este não é um diálogo extraído de fake news, instrumento político do clã Bolsonaro, nem a reprodução de uma informação colhida em celular de autoridade pelo Intecept Brasil e. depois, divulgada por Telegram.
Trata-se da reprodução de uma entrevista dada à Bloomberg por um de seus protagonistas, o matogrossense que disputa a liderança do pretório, que se torna menos excelso a cada vez que o citado presidente da República nomeia seu novo membro, com o colega, paulista, Alexandre de Moraes. Nele um dos protagonistas mostrou com quantos desaforos constrói a própria impunidade. E o interlocutor nada negou, o que confere à narrativa autenticidade, apesar de revelar um evidente desrespeito não apenas ao decoro de ambos no exercício de seus cargos públicos, mas a princípios fundamentais do Estado de Direito. E ainda mais espanto pela atitude de conspiração, muito mais próxima do florentino Maquiavel do que de Montesquieu de Brède, vizinha a Bordéus, conceituado terroir de vinhos de excelência produzidos na França. De vez que o conceito do nobre prevê a harmonia, e não a cumplicidade entre os poderes republicanos, proposta de forma crua (e cruel) pelo patrono do cinismo na real politik de hábito.
Gilmar, a quem seu ex-colega na dita Suprema Corte Joaquim Barbosa, em embates no julgamento do maior escândalo (até então) da vida pública nacional, o dito mensalão pelo delator, Roberto Jefferson, atribuía o comando de jagunços em suas propriedades no Centro-Oeste, não é jejuno em despudor. Não escondeu de ninguém suas refeições no Palácio do Jaburu, residência do vice-presidente promovido por impeachment da companheira de chapa presidencial, Michel Temer, que, a exemplo do atual comensal, o capetão sem noção, nunca foi propriamente da estirpe de vestais. Os constitucionalistas de Diamantino (MS) e Tietê (SP) dificilmente terão aproveitado a carona no avião presidencial no trajeto transatlântico para velar o socialista Mário Soares, a cujo velório aquele não compareceu, em Lisboa, em discussões estéreis e abstinentes sobre o legado de Marcelo Caetano, último herdeiro do fascismo luso de Salazar. É pouco provável, da mesma forma, que tenha aproveitado o encontro com o capitão-terrorista, que Geisel desqualificou como militar, para usar o idioma alemão, causa de enfado de membros do Supremo Tribunal Federal que não tiveram o privilégio de estudar na terra de Goethe.
Os juristas que foram ou ainda podem ser convidados a lecionar no Instituto de Direito Público, instituição particular de ensino e meio de vida da família do insigne togado, não farão muito esforço para negar que encontros fortuitos para fins alimentares ou etílicos entre chefes de poderes não constituem crimes de responsabilidade. Ou seja, bajulador e bajulado não têm por que temer um inesperado escorregão de Artur Lira ou Rodrigo Pacheco capaz de levar à votação algum dos inúmeros pedidos de impeachment que fazem sesta perene nas mesas de Câmara e Senado. Da mesma forma, seus mais encardidos inimigos entre procuradores da Lava Jato e parlamentares da oposição inerte ou da terceira via obstruída não encontrarão no Espírito das Leis, da lavra do barão, algo que sequer desaconselhe a prática de beijar mão ou lavar pés de potentados de sistemas tripartites de poder. De bom tom não é. Mas nada que possa tirar o advogado Augusto Aras de sua decisão de não molestar a folha corrida do amigão que o mimoseou com a Procuradoria-Geral da República. Certo?
Se Gilmar tivesse alguma preocupação com a própria compostura de supremo julgador em última instância, não teria passado de algoz para arauto do “mais forte são os poderes de Lula” só porque o ex-juiz Sérgio Moro condenou tucanos. Apesar de ter sido anatemizado por dividir sorrisos com Aécio Neves, traidor da memória do avô, Tancredo, lambendo as solas sujas do mensageiro do fascismo bananeiro. Se o petista José Eduardo Cardozo reduziu seu latim às declinações de dona Dilma e o PSDB de Mário Covas e Fernando Henrique virou passa moleque do camelô da pílula do câncer, por que Gilmar, logo ele, teria de disputar diploma de boa conduta depois de elevado ao Olimpo dos chaves-de-cadeia? Não vale bater continência para o patriarca dos PMs desvalidos e dos vendilhões do templo, que pedem propina em ouro vivo para gastar a miséria que cabe à educação no país que aboliu a escravidão africana em último lugar e massacrou os beatos de Canudos e Contestado? Por quais cargas d’água, então, não dar glórias a quem tornou possível inocentar o multiprocessado e condenar juiz e procurador, seus inimigos figadais?
Enquanto a Pátria amada, idolatrada, salve (mas nunca salva), se prepara para reeleger o malaco-mor pela segunda vez ou o padroeiro dos milicianos pela vez primeira, Macunaíma dá o mote de um novo dístico para a bandeira que Castro Alves usou para enxugar o pranto dos miseráveis: “musa, chora… e chora tanto que o pavilhão se lave no teu pranto!” No lugar de “ordem e progresso” de positivistas visionários o “ai, que preguiça” de negociantes do negacionismo genocida.
• Jornalista, poeta e escritor

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