Quem critica o presidente do STF se esquece dos políticos que dele nunca cobraram nada antes
A manchete da página da edição A12 do Estadão de domingo passado – “toga não pode ser usada para se chegar a um cargo eletivo” – é importante. E também grave! Primeiramente por causa do autor, o ministro Marco Aurélio Mello, que é membro do seleto grupo dos membros do Supremo Tribunal Federal (STF) e, como seu representante, presidirá o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) a partir de março, portanto ao longo de todo o processo das eleições gerais convocadas para outubro. A segunda – e definitiva – razão é que ela é absolutamente correta. Poucas intromissões entre os poderes podem ser tão danosas quanto a disposição de um juiz de usar a própria condição para se beneficiar num processo de escolha política. A política é a luta dos partidos (ou seja, das divisões da sociedade) pelo poder na República e à Justiça se impõe cega imparcialidade.
O ministro fez questão de esclarecer que tal conceito não se aplica a seu colega de Corte, o presidente do STF, Nelson Jobim, mas ele não pode negar que a condenação veste como uma luva a mão esquerda de Sua Excelência. Ex-ministro de Fernando Henrique e amigo pessoal do candidato deste à própria sucessão, José Serra, Jobim encontrou ótimas razões jurídicas para impor a “verticalização” das coligações eleitorais na eleição de 2002. A coincidência chegou a ser lamentada, mas não impeliu ninguém a pedir o impedimento legal de sua continuação no cargo. Até porque a eventual ajuda não teve êxito: o candidato governista foi soterrado por uma avalanche de votos sem igual na história da República. Nem impediu que o ministro do Supremo se tornasse amigo do vencedor. Nessa condição, votou a favor de 27 pleitos, alguns impopulares como a reforma da Previdência nem se importou de usar a própria caneta para, numa decisão autocrática, soltar o acusado de ter mandado matar Celso Daniel, Sérgio Gomes da Silva, cujo habeas corpus dorme impávida soneca nas gavetas do autor da pauta de julgamentos na Corte Suprema do País. Mais uma vez, ninguém levou isso em conta.
Jobim só começou a chamar a atenção quando brigou para impor aos colegas um pleito do amigo José Dirceu. Não conseguiu, mas chegou a ponto de inverter o sentido de um voto, que era negativo e virou positivo em seus critérios legais. E causou rebuliço ainda maior quando despachou para o arquivo morto o pedido da CPI dos Correios de quebrar sigilos do presidente do Sebrae, Paulo Okamoto, que se recusou a contar aos senadores de onde vinha o dinheiro vivo com o qual pagou uma dívida de seu amigo, por acaso o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (?), com o PT. Dívida que o devedor não reconhece. Foi um deus-nos-acuda, mas mais uma vez o barulho todo – aumentado com negativa semelhante e posterior ao pedido de quebra de sigilo do transportador de um dinheiro que teria sido importado de Cuba para a campanha de Lula à Presidência – pode impedir que se ouça a voz da razão.
Faz-se ruído demais por se crer que Jobim quer se candidatar a vice na chapa de Lula, esquecendo-se de que ninguém reclamou quando ele confessou que copidescava, a seu bel prazer, e com autorização do chefão Ulysses Guimarães, que nem se defender pode mais, a Constituição, assim como quem muda uma frase num artigo para jornal. Da mesma forma como se reclama no Congresso das interferências indevidas do STF na atividade das Casas de Leis, omitindo-se de que cabe ao Senado escrutinar a vida dos brasileiros nomeados para a Suprema Corte, sabatiná-los e até reprová-los, se for o caso.
De fato, Nelson Jobim andou exorbitando do caradurismo. Mas talvez seja útil perguntar aos parlamentares que ora se queixam dele por que foram tão corporativistas permitindo a fácil aprovação de seu nome para o posto; por que não abriram processo regular contra sua confissão estapafúrdia de reescrever a Constituição; por que… etc. etc. Jobim tem errado demais, mas não tem errado sozinho.
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde e autor de O silêncio do delator, prêmio Senador José Ermírio de Morais, da Academia Brasileira de Letras, em 2005. Clique na capa para ter acesso à livraria virtual.
© O Estado de São Paulo, 06 de junho de 2006