No Brasil, a ceia de Natal foi com pizza, e não com peru
“O governo está protegendo pessoas”, denunciou o relator da CPI dos Correios, deputado Osmar Serraglio (PMDB-PR), que, mesmo se dizendo eleitor do correligionário e governador de seu Estado, Roberto Requião, e não do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é governista, tendo votado no filho do ex-chefe da Casa Civil de Lula, Zeca Dirceu, para prefeito de Cruzeiro d’Oeste. Assim, o parlamentar respondeu à reação estapafúrdia do presidente da Câmara dos Deputados, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), e do ministro das Relações Institucionais, Jacques Wagner (PT-BA), que enfrentaram os indícios de existência do “mensalão” apontados em sua prestação de contas do fim de ano com meras convicções pessoais, e principalmente da sucessora e “companheira de armas” de José Dirceu, Dilma Rousseff, que chegou a disparar em seu estilo bruto e de maneira injusta contra as CPIs.
Aplaudido calorosamente pelos colegas, o relator teve razões para dizer isso. Mas seria mais exato se não restringisse a proteção ao governo. Pois a oposição também tem participado, e de forma bem descarada, do faz-de-conta pelo qual culpados (alguns deles confessos) vão saindo de fininho da trilha do pelourinho para se abrigarem sob o guarda-chuva da impunidade, aberto depois da renúncia de um punhado de acusados e da cassação dos dois pólos da crise, o delator Roberto Jefferson (PTB-RJ) e o delatado José Dirceu (PT-SP). O presidente nacional licenciado do PTB vem, aliás, de denunciar (em entrevista ao Jornal do Brasil, de dez dias atrás) a ocorrência de um “acordão” mediante o qual ninguém propõe o impeachment de Lula e, em contrapartida, resta incólume o mandato do ex-presidente nacional do PSDB Eduardo Azeredo (MG). Dir-se-á que Jefferson não prova o que afirmou. Mas até agora ninguém provou o contrário e, justiça seja feita, nem sequer se tentou desmenti-lo.
O fato é que até hoje os oposicionistas não abriram nenhum processo de cassação de parlamentar por quebra de decoro. O PL representou contra Jefferson; o PTB, contra Dirceu; e os líderes do PSDB e do PFL no Senado e na Câmara dos Deputados discursam muito, sem, contudo, agirem. Se não fossem a coragem e o discernimento de Osmar Serraglio, que para tanto – pasmem – obteve até o apoio do governista Ibrahim Abi-Ackel (PP-MG), não haveria um único processo aberto contra outros usuários importantes do “valerioduto” no Conselho de Ética da Câmara.
O episódio da absolvição de Romeu Queiroz (PTB-MG) pelo plenário da Câmara é um paradigma: mesmo confessando haver sacado R$ 450 mil do esquema de corrupção apelidado pelo correligionário Jefferson de “mensalão”, ele foi absolvido por ter dito que não ficou com o dinheiro, mas o distribuiu entre colegas. Ele não precisou provar que não ficou com o dinheiro nem ninguém lhe cobrou o nome dos colegas com os quais teria sido tão magnânimo. Seu mandato foi mantido pelo critério absurdo de que o partido, e não ele em pessoa, é que se teria locupletado do saque irregular da grande bolada. Isso deveria ser considerado agravante, e não atenuante, pois não consta que haja alguma permissão especial para partidos políticos praticarem crimes contábeis. Nem poderia haver, pois estes lutam legitimamente pelo poder no Estado de Direito seguindo normas, aprovadas por seus próprios membros e que fazem da democracia o império da lei, e não dessa delinqüência só liberada entre nós.
O mesmo critério estapafúrdio foi usado para a Assembléia Legislativa do Ceará perdoar o deputado estadual José Nobre Guimarães, correligionário e irmão mais novo do ex-guerrilheiro e ex-presidente nacional petista José Genoino. Como é de conhecimento geral, um assessor do tal Nobre foi preso pela Polícia Federal transportando dólares e reais em pastas e até na cueca, após ter sido filmado na companhia do citado dirigente nacional do partido do presidente da República num elevador. O noticiário dá conta da participação ativa do ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, ex-governador cearense e tido como uma das peças importantes no jogo político de Lula pela reeleição ano que vem, no preparo dessa pizza podre. O padrinho teria conseguido até convencer alguns aliados do presidente nacional do PSDB, Tasso Jereissati, a porem umas pitadinhas de orégano na dita cuja. Convém aduzir que o conhecimento elementar da aritmética mostra que a absolvição não teria sido possível sem essa vil traição de alguns tucanos aos princípios elementares da decência na política.
Idêntico raciocínio vale, aliás, para a manutenção do mandato de Romeu Queiroz na Câmara dos Deputados. Sem a cumplicidade de oposicionistas – para a qual, segundo asseguraram parlamentares que a confidenciaram ao relator da cassação de José Dirceu, Júlio Delgado (PSB-MG), teria contribuído a solícita ação entre amigos do governador do Estado de Delgado e Queiroz e presidenciável tucano, Aécio Neves Cunha – o petebista mineiro não teria o mandato poupado.
Diante de tantas evidências, às quais se soma a pressa com que a polícia paulista (sob comando de outro presidenciável do PSDB, Geraldo Alckmin) encerrou as investigações dos assassínios dos prefeitos petistas de Campinas, Toninho do PT, e de Santo André, Celso Daniel, preferindo a cômoda versão do crime comum contra a lógica plana dos fatos que aponta para a execução, só resta lamentar que nestes trágicos trópicos o prato de resistência da ceia de Natal não tenha sido mais peru com farofa, mas pizza com desfaçatez. O cinismo de Rebelo, Wagner e Dilma e a absolvição de Queiroz e Nobre (ah! ah! ah!) Guimarães comprovam que no Brasil de hoje a democracia não é o império da lei, mas da ampla, geral e irrestrita impunidade dos amigos do reizinho de plantão.
José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde, comentarista da Rádio Jovem Pan e autor de O silêncio do delator, romance ganhador do Prêmio Senador José Ermírio de Morais, da Academia Brasileira de Letras,como melhor livro de 2004.