O fundamentalismo de resultados

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Se Elba tiver juízo, nunca mais vai à Paraíba. Mesmo com seu pai oitentão ainda morando lá no sertão. A pergunta é: quem perde mais com isso? A própria Elba, o pai dela, o governador Cássio Cunha Lima ou o povo do Estado que aprendeu a amá-la?

Há algum tempo fui procurado por meu amigo de infância Marcondes Gadelha (seu pai, Zé Gadelha, de Sousa, era compadre do meu, Anchieta Pinto, de Uiraúna), que pretendia me engajar na campanha pela transposição do rio São Francisco. Sertanejo como ele, eu era simpático à idéia e, a seu pedido, cobri para o Jornal da Tarde, de São Paulo, um seminário sobre água em Fortaleza. Mas ali, então, duas coisas me convenceram de que a obra não era aquela maravilha que ele tentara me vender. A primeira foi um comentário do então governador do Ceará, Tasso Jereissati, que me contara ter sido procurado por seu amigo Antonio Carlos Magalhães, que lhe fizera um desafio: se ele lhe apresentasse um único estudo de impacto ambiental sobre a bacia, feito ao longo dos dois séculos em que se prega a transposição, o baiano desistiria de seu trabalho contra. Tasso não encontrou. Era tudo palha! Além disso, os técnicos cearenses, que me pareceram sérios, me convenceram de que a transposição só seria viável economicamente se a água fosse comercializada. Gratuita, ela só poderia ser jogada no mar sem utilidade nenhuma ou usada pelos chefes políticos regionais como instrumento de poder. Sou sertanejo e sei o valor econômico e político da água no sertão. E também não estou convicto de que Antonio Carlos Magalhães erre muito ao denunciar que a obra servirá apenas para possibilitar a drenagem de recursos de empreiteiras para a campanha de Lula.
Em outubro do ano passado, minha amiga Elba Ramalho fez num show no Riosul um apelo para que a obra fosse tratada de forma transparente pelo governo para evitar que viesse a causar mais problemas para nosso “Velho Chico”, que vem morrendo pelo descaso público. Na Paraíba, o apelo foi transformado numa traição e ela foi fuzilada na mídia a partir de uma moção em que o suplente de vereador, em exercício na Câmara Municipal de Campina Grande, Marcos Marinho exigia explicações. Um auto-de-fé daqueles de encher Torquemada, o queimador de bruxas, de orgulho. Tomei as dores da artista e exigi de seus detratores que também me demandassem as mesmas explicações. Se Elba tem boas razões ecológicas, eu acredito ter ótimas razões técnicas.
Tenho discutido o assunto em altos termos com amigos que são a favor: Napoleão Ângelo, da TV Tambaú, Eilzo Mattos, em seu retiro sertanejo, José Gomes da Silva, nas buchadas do Bananal, vendo Campina Grande a nossos pés, entre outros. Mas não posso admitir o tom nazifascista da cruzada contra Elba.
Minha posição foi motivo de chacota de comunicadores de rádio e interlocutores com quem cruzei nas ruas de Campina Grande e João Pessoa em 15 dias que passei de férias em janeiro. Preferi me fechar em copas para evitar perder minhas férias em discussões inócuas. Nem eu ia convencer os interlocutores apaixonados nem vou persuadir Lulinha Pão e Vinho a desistir da promessa demagógica eleitoral de matar a sede de nossos coitadinhos do semi-árido. Mais uma vez, contudo, vem Elba me tirar do retiro sossegado. Não posso me calar diante do absurdo que a está tornando a mártir dos fundamentalistas da transposição.
O apelo que ela fez pela vida do rio transformou-se em manifesto contra a obra. Ela se tornou definitivamente “a mulher que cuspiu no caneco”, uma paródia absurda do tal do “homem que cagou na pia”. E lhe está sendo proibido na prática o direito constitucional elementar de circular livremente em território nacional, justamente na Paraíba, sua terra, sua paixão, divulgada e honrada com seu talento e sua alma de pássara.
Vamos aos fatos: Flávio Eduardo, Fuba, pediu uma grana ao governo do Estado para patrocinar o desfile do popularíssimo bloco Muriçocas do Miramar na Quarta-feira de Fogo (22 de fevereiro) em João Pessoa. E Fuba, vereador pelo PSB do prefeito de João Pessoa, Ricardo Coutinho, apoiado pelos adversários do clã Cunha Lima, no governo do Estado, conseguiu a verba. Contratou Elba e começou a promover o desfile.
A divulgação da folia provocou duas reações. A primeira: um tal Comitê Estadual de defesa do Projeto de Transposição de Águas do Rio São Francisco protocolou nesta terça-feira (14 de fevereiro) ofício ao gabinete do governador Cássio Cunha Lima solicitando a “suspensão de qualquer pagamento para a senhora Elba Ramalho através dos organizadores das festividades carnavalescas da cidade de João Pessoa”. O pedido foi noticiado com estardalhaço pelo jornal local Correio da Paraíba. Até aí, isso não pode ser contestado, pois faz parte do jogo: é de fato discutível se dinheiro público deve ser usado para financiar folia ou pagar cachê de artistas, que pode ser bancado por particulares.
A segunda é que são elas: Rui Dantas, sertanejo de Pombal, apresentador de um programa na Rádio Correio da Paraíba, de meio dia às duas da tarde, começou a conclamar do microfone o povo de João Pessoa a jogar ovos em Elba. Lembra-se daquela música de Chico (que Elba cantava na Ópera do Malandro) Geni e o Zepelim? Apois. “Joga bosta na Geni” era o refrão. Agora é algo semelhante: “Joga ovo na Elbinha”. Fuba, o parceiro de velhos carnavais de Elba, comportou-se covardemente. Em vez de honrar o convite e anunciar que se postaria à frente da amiga para receber os ovos podres, telefonou para o empresário dela, Gaetano Lopes, para dizer que o contrato seria mantido, mas o bloco não tinha como garantir sua integridade física. Elba desistiu, é claro.
E cancelou os shows contratados para o Maior São João do Mundo no Parque do Povo, em Campina Grande. Depois de 13 anos seguidos cantando na Borborema, este ano ela vai cantar em Caruaru, Pernambuco, onde a maioria também quer a transposição, mas não tem esse comportamento nazifascista com que ela está sendo maltratada na Paraíba.
Aliás, é bom que se esclareça desde já que esse fundamentalismo tem gato na tuba. Então, Roberto Cavalcanti, dono do Sistema Correio, não é suplente do senador José Maranhão, do PMDB, candidato da oposição e dado como favorito nas pesquisas para a eleição de outubro? Pois é: se Maranhão ganhar a eleição, ele será senador quatro anos.
Nesse fundamentalismo de resultados, seus profetas já ganharam uma parada: tiraram Elba do palanque dos adversários e, com isso, acham que enfraqueceram a campanha deles. Será? O benefício compensará o custo político da cruzada censória, violenta, agressiva, desproporcional, injusta e desumana?
Se Elba tiver juízo, nunca mais irá à Paraíba. Mesmo com seu pai oitentão ainda morando lá no sertão. A pergunta é: quem perde mais com isso? A própria Elba, o pai dela, o governador Cássio Cunha Lima ou o povo do Estado que aprendeu a amá-la? Fique claro que fundamentalismo não é assunto do Islã distante. Pode estar bem mais perto de nós do que imaginamos e ser usado como bomba terrorista por muita gente que sai por aí arrotando amor à liberdade e à democracia. Eu, hein?!

 

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde e autor de O silêncio do delator, prêmio Senador José Ermírio de Morais, da Academia Brasileira de Letras, em 2005. Clique na capa para ter acesso à livraria virtual.

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