O direito do pastor de falar abobrinhas

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Se Comissão dos Direitos Humanos da Câmara tivesse valor, presidente era do PT

O deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) caiu do céu, ou melhor, para evitar a metáfora religiosa do maná, é sopa no mel na vida de seu colega Marco Feliciano (PSC-SP). Sem a oposição ferrenha dele e o estardalhaço dos manifestantes contra a ocupação da presidência da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara pelo pastor, este seria, sem nenhuma ofensa, mas como força de expressão, um pobre diabo do baixo clero, um Zé de Nada: seu ideário estapafúrdio jamais ultrapassaria os umbrais dos templos em que ora e professa a versão muito peculiar, mas nada original, que tem da Bíblia. O que o torna um indesejável dos gentios o está transformando no ai-jesus de milhões, talvez de dezenas de milhões, de preconceituosos que vivem e votam em nosso Brasil.

Fato é que Feliciano tem o mesmo direito de presidir as reuniões dessa irrelevante comissão que Wyllys teria. Ambos são deputados, ambos foram escolhidos por parcelas relevantes do eleitorado para ocuparem legal e legitimamente uma vaga de representantes do povo na Casa de leis. Homossexuais e heterossexuais são humanos e têm direito a adotar a opção sexual que lhes aprouver e a manifestar suas opiniões a respeito de quaisquer fatos ou valores sobre os quais forem chamados a opinar. Perderá a razão quem – homossexual ou heterossexual – partir para a agressão física ou para a difamação explícita do outro. Querelas do gênero são resolvidas na lei pela Justiça dos homens ou no dia do Juízo Final, para quem neste crer.

Marco Feliciano tem opiniões controversas sobre os textos sagrados. Acha, por exemplo, que a maldição que Deus teria feito pesar sobre os descendentes de Cam (que ele chama de Cão, uma das denominações do diabo no cristianismo popular) condena seres humanos de pele escura à danação eterna. Essa leitura limitada e literal da fábula bíblica caiu em desuso com a abolição da escravatura. Mas manteve-se em voga no seio de comunidades humanas que desconhecem que, do ponto de vista biológico, raças nem sequer existem.

No dia do Juízo Final, de nada adiantará o latim do pastor diante do julgamento de Nosso Senhor Jesus Cristo, que destacou entre os preceitos que Moisés levou ao povo eleito, ao descer da montanha com as pedras com os Dez Mandamentos, o que manda amar a todos por igual. Mas esse é um problema que não está posto na crise política criada pelo embate de fé entre o rústico que se fez sacerdote por conta própria e os seguidores do ganhador do reality show Big Brother Brasil que virou representante de eleitores de extrema esquerda do Rio de Janeiro e porta-voz oficioso de gays, lésbicas e simpatizantes do Brasil todo. Antes do advento do Juízo Final, esta é hora de tratar da democracia vigente.

Justiça seja feita ao pastor, é improvável que, em suas orações mais secretas e delirantes, ele tenha pedido ao Senhor que o tornasse uma celebridade instantânea. Até a distribuição dos cargos nas comissões na Câmara, ele era apenas um membro qualquer da bancada evangélica no Poder Legislativo – uma excrescência de nossa democracia capenga em que o Estado é leigo, mas a política não o é. O PSC é uma legenda da base governista e a parte que lhe coube no latifúndio das benesses e prebendas do poder republicano transformou em pão a migalha que os donos do poder lhe jogaram no banquete dos eleitos para compartilhar manjares e sobejos à mesa dos feitores.

Não se pode acusar o pastor de guloso ou de néscio. No meio de suas prédicas recheadas de pérolas da intolerância e joias da ignorância, ele sacou pelo menos uma definição de inegável verdade, razoável humildade e imprescindível precisão. A Comissão de Direitos Humanos, que lhe coube na divisão do butim, não vale lá grande coisa, se é que tem alguma valia. De uma lógica a que Aristóteles e Santo Tomás de Aquino não negariam acerto, a definição não careceu da explicação: se valesse algo, o PT não a teria cedido ao sócio minoritário na aliança.

O reconhecimento da insignificância da honraria, contudo, não pode ser confundido com a automática aceitação da perda da prenda. E o pregador agarrou-se com ferocidade à oportunidade que os inimigos lhe deram de fazer ecoar no Brasil sua teologia de bolso e suas noções de filosofia de almanaque. Afinal, um líder habituado a exigir dízimo dos fiéis que reúne não seria digno de seu ofício se não percebesse a obviedade fervorosa de que ele e sua grei são os maiores beneficiários dessa execração pública. Mas isso não lhe tira o direito de prosseguir pregando para apanhar e apanhando para se tornar mais notório. De uma celebridade tal que de catador de votos poderá ser guindado à condição de sumo sacerdote da intolerância dos costumes, assim como seu companheiro de lado Jair Bolsonaro se tornou diácono da nostalgia fascista da ditadura militar.

Em rompante que pode ser atribuído à falta de senso, Feliciano exacerbou de sua legitimidade ao mandar prender um manifestante que o chamou de “racista” – o que, para ele, não deveria ser ofensa, já que o torpe fundamento bíblico não basta para despi-lo da pecha. Ao restaurar o “teje preso” em plena Casa do povo, o pastor permitiu que, pelo menos naquele episódio grotesco, as hordas de baderneiros que interromperam o trabalho legislativo, sem mandato que tanto lhes permita, lhe furtassem a óbvia legitimidade.

O presidente da comissão nem se dá ao trabalho de lembrar que direitos humanos não são monopólio de esquerdistas, homossexuais e negros, assim como a virtude não pode ser exclusiva de direitistas, heterossexuais e brancos. Ele preferiu aumentar seu contencioso para o acerto final de contas com Deus ao Lhe atribuir a condição de assassino serial que encurtou a vida do beatle John Lennon e dos Mamonas Assassinas por obscura e egoísta submissão a cânones doutrinários. Mas isso é lá entre eles – o Senhor severo, mas bondoso, e seu servo atrevido e boquirroto. Aos democratas cabe deter as mãos que querem tapar-lhe a boca e ignorar as abobrinhas que dela saem.

Jornalista, poeta e escritor


(Publicado na Pag.02A do Estado de S. Paulo de quarta-feira 10 de abril de 2013)

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José Nêumanne Pinto

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