Na urna, o eleitor não terá de ser tão benévolo como o foi o STF com Palocci
Nunca antes na história deste país, diria o presidente Luiz Inácio, um episódio provou com tanta clareza a distância imensa e crescente do País oficial para o Brasil real quanto a rejeição pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da abertura de processo contra o deputado Antônio Palocci (PT-SP). Talvez importe menos o resultado em si do que a expectativa criada em torno do caso, como se a sessão do órgão máximo do Poder Judiciário pudesse determinar por si só o futuro político do protagonista e – mais do que isso – seus efeitos sobre o cenário institucional republicano. A começar pelos meios de comunicação, que transformaram o julgamento numa espécie de turfe de resultado antecipado – e ninguém pediu desculpas ao distinto público por ter a previsão de nove a zero virado uma disputa apertada de cinco a quatro –, tudo foi tratado como um espetáculo. E não um evento de gala, mas uma espécie de encenação da Paixão de Palocci num circo mambembe que nem lona tinha.
Salvos pelo gongo de um voto só, os profetas que anteciparam a goleada que não foi empate por um triz se esqueceram de uma velha lição de nossos ancestrais, que não se atreviam a adivinhar o sexo de bebês (antes do advento da ultrassonografia), resultados das urnas e sentenças judiciais. E, com a mesma presteza com que foi preparada a consciência cívica nacional para a derrota previamente anunciada da verdade do cidadão honesto, porém pobre, do Brasil da área de serviço para a versão do ilustre, mas suspeito, dignitário do País dos ofícios e salões, agora se vendem as profundas repercussões do ato sobre o destino do cidadão que não será investigado e dos demais, impotentes para deter a avalanche dessas tradições.
Josef Goebbels, o maquinista da locomotiva de propaganda do 3º Reich nacional-socialista, cunhou a sentença segundo a qual, de tão insistentemente repetida, uma mentira pode se consagrar como se fosse um cânon. Antes que os discípulos secretos do mago da comunicação do regime de Hitler no Brasil consigam produzir mais uma evidência da superioridade da mentira oficial sobre o fato real, talvez seja muito conveniente submeter todas essas falsas e insistentes premissas à luz das verdades que sempre foram obviedades que ululam.
Diz-se agora, por exemplo, que graças à decisão suprema da Justiça o deputado Palocci está definitivamente liberado para tentar os voos altaneiros que o conduziriam ao Palácio dos Bandeirantes ou até, se algum impedimento se interpuser no caminho trilhado do chefe Lula para Dilma, ao Planalto. Trata-se de uma falsa constatação. Se um dos ministros do Supremo resolvesse desafiar a lei consensual vigente no Brasil (e lembrada por Marco Aurélio Mello) de que “a corda sempre estoura no lado do mais fraco” e, assim, o ex-czar da bem-sucedida economia da administração federal petista pudesse ser processado, como pretendia a Procuradoria-Geral da República, não haveria impedimento para sua candidatura. Como impedimento para o mesmo fim também não haveria se o nobre parlamentar nem sequer houvesse sido julgado pela colenda Corte.
O julgamento de uma semana atrás pode ter produzido um enorme alívio na vida do maior confidente do presidente da República, deste próprio e dos petistas em geral, que têm encontrado notórias dificuldades para indicar concorrentes à altura para enfrentar os tucanos José Serra na sucessão presidencial e Geraldo Alckmin na estadual paulista. Mas atribuir à decisão do Supremo o condão de ter transformado um candidato com poucas probabilidades de vitória numa eleição majoritária em favorito a subir ao pódio é um palpite que não pode virar prognóstico.
A decisão dos cinco contra quatro se assemelha à de um árbitro de futebol que, ao vir a bola bater na mão do zagueiro dentro da área, usa o arbítrio da interpretação para não marcar o pênalti, partindo do pressuposto, muitas vezes equivocado, de que a interceptação não fora intencional. Num caso como no outro, pode-se discutir e polemizar, mas, por definição das regras, pênalti que não for marcado não pode ser convertido nem decisão de tribunal, alterada. Será inócuo discutir quem estava certo no caso, porque este escriba se penitencia pelo fato de não compreender o idioma particular no qual os supremos magistrados redigem e proferem seus votos. Isso coloca este escrevinhador na mesma condição do caseiro Francenildo Costa, que, após ouvir o voto de Marco Aurélio Mello, que o conduzia ao panteão dos heróis nacionais, imaginou que pudesse estar sendo xingado pelo ministro. O caseiro fala a verdade com o idioma da copa e da cozinha. Seus adversários criaram um dialeto próprio para falseá-la fingindo ser os guardiães dela.
Os ministros do STF que livraram o pescoço de Palocci da espada de Dâmocles não tiveram zelo idêntico ao do líder da bancada do PT no Senado, Aloizio Mercadante Oliva, que condenou a ex-secretária da Receita Lina Vieira por não ter denunciado a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, ao ouvir sua insinuação para dar velocidade à fiscalização das empresas do clã Sarney. Ninguém se lembrou de cobrar de Palocci seu dever de cobrar do subordinado Jorge Mattoso, então presidente da Caixa Econômica Federal, a ominosa quebra do sigilo do pobre coitado que não perdeu só o emprego, mas até a profissão.
Mas o povo, que não entende o latim do advogado do deputado, o também político José Roberto Batochio, talvez não seja tão benévolo com o candidato Palocci como o foi o STF. No tribunal da urna, pode ser que o caseiro assombrado ao ser forçado a assumir de público a humilhante condição de bastardo assombre a miríade de ambições de seu carrasco. Por que essa decisão judicial tornaria um deputado eleito no rabo da lista favorito para a Presidência ou o governo paulista?
© O Estado de S. Paulo, quarta-feira 2 de setembro de 2009, p.A2