José Nêumanne
Mundo prova que Bolsonaro erra
e aqui já há quem se habilite a nos livrar de seu jugo
A primavera despediu-se de Budapeste sábado com a Arena Puskas lotada por 60 mil torcedores presentes ao jogo da Eurocopa entre Hungria e Itália. O verão começou domingo no Hemisfério Norte com festa de rostos nus e abraços comovidos na manhã ensolarada de Nova York. Ali, com 70% da população imunizada, a vitória do time de basquetebol Brooklyn Nets foi comemorada em seu ginásio, também lotado. A Hungria foi o primeiro país da União Europeia a vacinar e imunizou metade de seu povo, mesmo sendo o primeiro-ministro, Viktor Orbán, de extrema direita e venerado pela famiglia Bolsonaro. A vacinação nos Estados Unidos começou sob Donald Trump, herói da contemporânea capitania hereditária tupiniquim, e o presidente, Joe Biden, Zé Gotinha ianque, deu por findas as restrições sanitárias na estreia desta estação.
O Brasil acompanha todas as provas da eficácia da imunização de longe pela televisão. Essa é uma das causas do negro humor necrófilo do presidente Jair (ou Jail, cadeia em inglês, destaca cartaz exibido em Londres no fim de semana), o charlatão-mor da pílula do câncer e da cloroquina. No fim de semana, antes de o inverno chegar abaixo do equador, o mundo soube que sua indiferença contribuiu de forma inelutável para a marca tétrica de meio milhão de mortos pela pandemia da covid-19 nestes cada vez mais tristes trópicos. “Agora é o inverno de nosso descontentamento”, previu o britânico William Shakespeare no último decênio do século 16, na abertura da tragédia Ricardo III. O verso foi usado como título de um romance do norte-americano John Steinbeck em 1961, um ano antes de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. O protagonista é um balconista de origem nobre que negligencia valores morais numa sociedade corrupta.
Bolsonaro não recorreu à piada infame de hábito para ofender e humilhar os entes queridos das vítimas de sua falta de empatia e sensatez. Que poderia ter aprendido com Orban, que mantém na Hungria pregação negacionista, mas não negligencia a imunização, necessária para garantir suas bazófias eleitorais. Ou com Benjamin Netanyahu, que, antes de entregar a chefia do governo a adversários de direita e esquerda. coligados em Israel, adotou postura sábia ao liderar o combate ao novo coronavírus com esforço e eficiência, telefonando todo dia para o CEO do laboratório Pfizer para garantir doses de boa imunização de rebanho pela vacina. Seu fã brasileiro, porém, na live de 17 de junho último, disse que “imunização é até mais eficaz que a vacina”. O negócio dele é matar…
E manobrou os fios de seu teatrinho de fantoches com piadas de caserna para manter no silêncio covarde o discurso gabola. O chefe da Casa Civil, general Luiz Eduardo Ramos, comemorou os 900 dias de desgoverno desfiando lorotas da estratégia desumana desde a concepção no título da nota, “900 dias: nos trilhos na preservação de vidas e da retomada da economia”. Não é ironia, é burrice. O secretário de Comunicação (et pour cause), deputado Fábio Faria, zurrou cinismo intolerável num tuíte: “Em breve vcs (vocês) verão políticos, artistas e jornalistas “lamentando” o número de 500 mil mortos. Nunca os verão comemorar os 86 milhões de doses aplicadas ou os 18 milhões de curados, porque o tom é sempre o do ‘quanto pior, melhor’. Infelizmente, eles torcem pelo vírus.” Trata-se de uma confissão de insensibilidade incomum mesmo na política brasileira. Faria, que apoiou com o pai Dilma e Lula em 2014, e o impeachment do poste, em 2016, é agora bolsonarista-raiz até na total falta de piedade e sabedoria, um declarado apóstolo da seita da direita estúpida, em contraponto à extrema direita de Orban, Trump e Bibi. É abissal sua dificuldade em entender que muitos “salvos” lamentam os próximos que perderam, ao contrário dele. E que outros sofrem com reações intoleráveis da contaminação e da dolorosa recuperação da capacidade pulmonar perdida. Tendo votado em Dilma, em 2014, e contra o próprio voto, em 2016, não distingue luto de festim.
Bolsonaro, Ramos e Faria são incapazes de entender notícias dolorosas como as dívidas acumuladas pelas famílias com a cobrança de hospitais chegando na internet. E a perda média calculada de 18 anos de vida pelas vítimas fatais da peste contemporânea, caso do ex-presidente do Banco Central Carlos Langoni. Contentam-se em comprar votos de parceiros na roleta russa na comissão parlamentar de inquérito da covid no Senado por R$ 660 milhões. Na caneta bic deles dinheiro público no orçamento é vendaval, como cantou certa vez o príncipe Paulinho da Viola, Paulo César de Faria, que não é parente de Fábio, o genro profissional.
Nesse nosso inverno do descontentamento, no inferno do luto e do pranto por nossos irmãos extintos, a razão dos fatos revelados nos países que não são desgovernados, mostra que a direita estúpida não manda na rua com motociatta. E põe em risco o discurso do capitão de milícias: pois a flexibilização das restrições pode transferir a tormenta que nos ameaça em fogueira para imolar “Jail” Inácio Bolsonaro. Oxalá a vacinação em massa devore sua imunidade política.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado na Pag.A2 do Estado de S. Paulo segunda-feira, 23 de junho de 2021)
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