Para ministro, Lula foi o único presidente eleito
do e para o povo e Bolsonaro é profeta
“Ninguém pode servir a dois senhores” é uma exortação de Jesus cujo significado revela a exclusividade exigida por Deus aos seus servos. O próprio Cristo explica por que não se pode servir a dois senhores. Está no Evangelho de Mateus (6:24): “Porque ou há de aborrecer-se de um e amar o outro, ou se devotará a um e desprezará o outro”. O ministro da Justiça e da Segurança Pública, André Luiz de Almeida Mendonça, certamente já deve ter meditado muito sobre essa prédica. E não tanto por frequentar a igreja presbiteriana Esperança de Brasília, mas por causa das vicissitudes de sua carreira no serviço público, na qual teve a oportunidade de servir não a dois, mas a três senhores: Dias Toffoli, Lula da Silva e Jair Bolsonaro.
Sua Excelência começou na profissão como advogado da Petrobrás. De lá saiu para fazer carreira fulgurante na Advocacia-Geral da União (AGU). Em 2002 era procurador-seccional da União no norte do Paraná, e, em artigo na Folha de Londrina, saudou a primeira vitória de Luiz Inácio Lula da Silva para a Presidência da República, sob o título O povo se dá uma oportunidade. “Neste momento histórico nos deparamos com a realidade revelada nas urnas: temos o primeiro presidente eleito, do povo e pelo povo”, cravou sem medo de ser feliz.
Não foi propriamente um preito à verdade, pois o ex-líder sindical é, na verdade, filho de Genival, que ganhava a vida como estivador no Porto de Santos, operário braçal, mas com privilégios notórios nas relações de trabalho. Não era um potentado, como Epitácio Pessoa, um estancieiro, como Getúlio Vargas, um militar de alta patente, como Eurico Dutra, nem mesmo um acadêmico, como Fernando Henrique Cardoso. Mas não se pode dizer, por exemplo, que Juscelino Kubitschek de Oliveira não vinha de um lar humilde, sendo, como era, filho de dona Júlia, professora primária e viúva, que sustentou dois filhos com muito sacrifício.
Não se sabe que importância teve esse texto na predileção por ele do advogado Dias Toffoli, que sempre atuou a serviço do Partido dos Trabalhadores (PT) como assessor jurídico das bancadas da legenda de Lula na Assembleia Legislativa paulista e na Câmara dos Deputados. Mas ninguém duvidará da gratidão do subordinado ao advogado-geral da União nomeado pelo ex-presidente petista para o Supremo Tribunal Federal (STF), cargo no qual nunca deixou sem apoio o antigo subordinado da AGU. Mendonça, especialista em gratidão radical, organizou o livro Democracia e Sistema de Justiça, em parceria com um colega do ex-chefe no “pretório excelso”, Alexandre de Moraes, para comemorar os dez anos de atuação daquele (isso mesmo!) no STF.
Dias Toffoli indicou-o ao presidente Jair Bolsonaro, que o nomeou para chefiar a AGU antes da própria posse, em dezembro de 2018, último mês do governo Temer. No cargo apoiou o padrinho em tudo: deu parecer favorável ao inquérito contra os inimigos do STF, relatado pelo já citado Alexandre de Moraes, e ao indefensável banquete de vinhos três vezes premiados com medalhões de lagosta, pago pelo pagador de impostos.
Promovido ao Ministério da Justiça, o teólogo presbiteriano, definido como favorito à vaga do decano Celso de Mello no STF em novembro próximo, por ser “terrivelmente evangélico”, ungiu o chefe do governo qualificando-o de “profeta no combate à criminalidade”. E mostrou com canetadas magistrais que não há incompatibilidade em servir aos petistas Lula e Toffoli sem deixar de ser prestativo a Jair Bolsonaro, presidente que venceu a eleição por ter prometido expulsar o PT do poder. Aboletado no lugar que antes era ocupado pelo ex-juiz que condenou seu ídolo à prisão por corrupção, Mendonça não se negou a assinar um esdrúxulo pedido de habeas corpus para fanáticos bolsonaristas que participaram de atos públicos reivindicando o fechamento do STF e do Congresso Nacional, enquadrados por seu parceiro nas loas a Toffoli, Alexandre de Moraes. E usou a Secretaria de Operações Integradas, criada pelo antecessor, Sergio Moro, para devassar a vida de 579 servidores federais que se manifestaram publicamente contra arreganhos fascistas de apoiadores de seu chefe atual, o capitão Bolsonaro.
O uso de métodos que lembram antigos (mas não aposentados) esbirros da ditadura militar em seu Serviço Nacional de Informações pode parecer uma traição a seus mais antigos senhores do PT, mas não é bem assim. Lula sempre se confessou admirador de Adolf Hitler. E Toffoli, que já conseguiu mandar o benfeitor de volta ao lar, doce lar, hoje tem como prioridade número zero um retirar o ex-juiz Sergio Moro, que condenou o petista, do caminho do novo parceiro para a reeleição, já que talvez seja impossível permitir que o próprio ex-sindicalista dispute a eleição. Ou seja, pode até ser que os três senhores a que Mendonça serve frequentem a mesma comunidade religiosa que cultua o poder pelo poder: o bolsopetismo. E à noite, antes de se persignar para dormir o sono pesado dos injustos, o pastor seja terrível e evangélico ao mesmo tempo, justificando-se como um humilde cumpridor da labiríntica e férrea vontade divina.
Jornalista, poeta e escritor
(Publicado na Pag. A2 do Estado de S. Paulo da quarta-feira 5 de agosto de 2020)
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