Terça-feira 3 de maio de 2016
A Escolinha do Professor Lavenére
Conta o folclore do jornalismo que, na madrugada de 1º de abril de 1964, João Dantas, proprietário do Diário Carioca, telefonou para a redação de seu jornal, aflito, para saber novidades da movimentação das tropas do Exército no afã de depor o presidente João Goulart. O toque do telefone despertou o setorista, que dormia sobre resmas de papel de impressão.
– Quais são as novidades? – perguntou.
O setorista respondeu que não havia.
– Que não há, que nada, seu moço! As tropas estão na rua e o senhor também.
Algo me diz que esse plantonista poderia ser o então jovem “foca” Marcelo Lavenère, hoje venerável causídico, que em 1992 presidiu a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e foi um dos autores do momentoso processo que tirou Fernando Collor de Mello da Presidência. A aula de História Comparada que ele acaba de dar aos buliçosos senadores da comissão do impeachment na Câmara Alta pareceu ter sido da lavra do dorminhoco que deixou a História passar ao largo da janela da redação. Convocado para participar da defesa da presidente Dilma Rousseff, baseada no mantra “impeachment sem crime é golpe”, ele se comportou como um mau calouro de Direito de alguma daquelas faculdades que concedem diplomas à distância. Fê-lo tanto ao desqualificar a hipótese autorizada do procurador do Tribunal de Contas da União (TCU), Júlio Marcelo de Oliveira, no dia anterior, quanto, principalmente, ao defender com ardor a tese do golpismo, amparando-se na comparação com o último golpe à mão, o que deu início à ditadura militar de 1964.
O golpe de 64 começou a ser planejado em março de 1951, há 65 anos, no enterro do general Canrobert Pereira da Costa, quando o coronel Jurandir Bizarria Mamede leu um manifesto sublevando o grupo que mais tarde seria apelidado de Sorbonne, por se reunir nas aulas da Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro. Dois meses depois, eu nasceria. Três anos após, o então presidente Getúlio Vargas se mataria. E, malogradas todas as tentativas de tentar impedir a posse de Juscelino Kubitschek de Oliveira e de no governo depô-lo, o mesmo grupo de militares ensaiou várias vezes a tomada do poder. Quando Jânio Quadros renunciou em agosto de 1961, os oficiais tentaram impedir a posse do vice, João Goulart. Encurralados pela reação da Rede da Legalidade, montada por Leonel Brizola, à época governador do Rio Grande do Sul, falando pelo rádio do Palácio do Piratini, empossaram o cunhado deste, mas lhe impuseram o compromisso parlamentarista. Ainda perderiam o plebiscito em que o povo consagrou o presidencialismo por larga margem. Mas, enfim, em 1964, enfrentando o débil esquema militar do presidente atarantado, deram o golpe, assumiram o poder e impuseram um regime autoritário truculento, que se perdeu em torturas e mortes nos porões a partir de nova intervenção, em 1968.
Que tropas estão em que ruas, das quais só o dr. Lavenère tem conhecimento? Digamos que ele tenha razão. Sua aula mínima seria bastante longa se ele tivesse de explicar como conseguiram conspirar na calada da noite 61% dos brasileiros (mais de 120 milhões), que querem ver a “presidenta” dele pelas costas. Com estes concordaram 367 deputados federais (69% do total de 513). E se estiver correto o placar do Estadão, 50 senadores (61% de 81), também. As decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), respondendo a insistentes ações do advogado José Eduardo Cardozo, que a defesa de Dilma levou ao plenário, foram sempre pela continuidade do processo na Câmara e, depois, no Senado. A última delas, garantindo a votação da admissibilidade na primeira de uma longa fase, foi autorizada por oito votos a dois. A porcentagem igual de intenção de votos dos senadores e opiniões dadas pelos entrevistados pelo Datafolha não deve ter sido combinada em cambalachos improváveis, mas mera coincidência, pois o dr. Lavanère deve concordar que coincidências existem. Só para deixar o ilustre jurista mais boquiaberto ainda, eu lhe contarei que Dilma foi empossada há cinco anos e quatro meses com ampla maioria no Congresso, que ele implodiu mercê de sua inabilidade. E mais: seu antecessor, Lula, e ela nomearam 8 dos 11 ministros do STF.
Ô, dr. Lavenère, que decepção: eu podia dormir hoje sem sentir vergonha alheia de sua aulinha digna do Professor Raimundo.
(Publicado no Diário do Nêumanne no blog no Estadão)