José Nêumanne
Signo da generosidade franciscana virou lema de barganha de verbas por apoio, trocada pelo acréscimo à sentença da oração do Cristo na instauração da “democracia” sem povo dos populistas
Não há boa palavra que não possa ser distorcida e não acabe por expressar as piores intenções de quem nunca as teve boas. Nenhum filho de mulher tem uma biografia tão comprometida com a bondade, o desapego e o amor à natureza como o padre católico medieval, de família abastada e que viveu em plena, franca e santa pobreza: Giovanni di Pietro di Bernardone. Oito séculos depois de pregar suas melhores intenções, São Francisco de Assis, fundador da ordem franciscana e inspirador do nome do atual chefe da Igreja Católica, teve seu refrão mais célebre – “é dando que se recebe” – se tornado a inversão perversa e cínica para justificar a barganha vil e indecente de recursos públicos por proveitos privados.
Almir Pazianotto Pinto, que foi ministro do Trabalho e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), atribuiu a inversão do lema franciscano no Brasil contemporâneo ao deputado do PMDB paulista Roberto Cardoso Alves, Robertão, numa paródia para substituir, em 1988, a prática do que era, então, mais popularmente definido como “toma lá, dá cá”, mais curto, mais grosseiro, mais direto. Em artigo publicado no Correio Braziliense, à véspera do último Natal, Pazianotto usou de sua experiência e da vivência política para bordar na bandeira do hoje célebre e reinante Centrão a adaptação canalha da piedosa generosidade franciscana.
Em seu artigo que tem como título o lema atual do troca-troca, ele registrou, sem dó nem dolo: “A pulverização partidária, a ausência de compromissos ideológicos e a leviandade na administração dos interesses públicos, converteram a Câmara dos Deputados e o Senado numa espécie de supermercado, onde se negocia apoio ou oposição ao Poder Executivo. Palavra, assinatura, honra e dignidade podem ser comprados. Quando o presidente da República, de olhos na reeleição, à falta de liderança política e desprovido de partido próprio, pratica o toma lá dá cá, torna-se refém da Câmara dos Deputados e do Senado. É quando a negociação política de alto nível corre pelo ralo. Deixa de zelar pelos interesses da nação para se transformar em comércio de emendas parlamentares, de medidas provisórias, de ministérios, de diretorias de estatais e de sociedades de economia mista. Nessas circunstâncias, os presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado adquirem poderes excepcionais, porque, segundo o Regimento Interno, são senhores da pauta, da ordem do dia e da condução dos trabalhos”, escreveu, revelando algo que testemunhou. Em quatro anos de vigência, a Constituição “cidadã”, conforme afirmação de Ulysses Guimarães, que a presidiu, assim como ao partido em que Almir e Robertão militaram, criou o ambiente moldado à medida para esse figurino.
Hoje, 32 anos depois, tendo o Centrão se apoderado das transações nada republicanas que comandam nossos destinos, o principal líder do grupelho, criado e cevado no antifranciscanismo vigente, Arthur Lira, já encomendou uma nova bandeira e nela um novo lema para a indulgência plena de seus sócios proprietários. E, ao mesmo tempo, para a negação ao cidadão do princípio básico da teoria dos pais fundadores da democracia moderna, 500 anos depois do padroeiro dos humildes. Convidado a resumir sua proposta para a disputa da presidência da Câmara, não se fez de rogado e recitou à frente das câmeras sua versão do “Mateus, primeiro os meus”: sob sua chefia, a Câmara será do ‘nós’ e não do ‘eu’. Sua pretensão, claro, é projetar uma Casa mais plural e menos submetida ao poder do presidente, contrapondo-se ao antecessor, Rodrigo Maia. Mas, ao vê-lo e ouvi-lo frente a câmeras e microfones anunciando novos tempos para o País, lembrei-me muito mais da paródia popular à segunda invocação do Pai Nosso, oração por excelência do próprio Jesus Cristo (Mateus, 6, 10). Ao comentar o “venha a nós o vosso reino”, na Catequese sobre o Padre Nosso, o papa Francisco deu-lhe o significado que o pregador imaginou, ao ensiná-la aos fiéis: “o senhorio de Deus fez-se próximo dos seus filhos.” Assim, como no caso do lema franciscano original do Centrão, seu atual sumopontífice, sem querer, querendo, como diria Chaves, terminou por permitir sua leitura correta com um provérbio nascido da prática da hipocrisia com o lema da antiga prática: “Venha a nós, e ao vosso reino, nada”.
Robertão morreu num acidente de automóvel há 25 anos. Ricardo Fiúza, citado como ele no lúcido artigo de Pazianotto, perdeu sua luta contra o câncer há seis anos em casa, no Recife. Eduardo Cunha, o mais bem-sucedido líder do Centrão, que os dois primeiros criaram, mofa numa cela de prisão em Curitiba, condenado por corrupção, à espera de que a benemerência da maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) o livre, embora com a real intenção de limpar a ficha sujíssima de Lula. Ele deve orgulhar-se do mais leal dos discípulos: Lira deu um dos meros dez votos contra a cassação do ex-presidente da Câmara que cassou Dilma Rousseff, e não evitou o inevitável. Lira não deve ser acusado de excesso de franqueza por incorporar o próprio vademecum da impunidade para todos da grei, uma vez que ele não teve a intenção de avisar ao povo brasileiro que este está fora do pacto. Pois reservou tudo de bom e do melhor só para ‘nós’ do bando: perdão de penas, verbas parlamentares bilionárias e nomeação de parentes e apaniguados no novo torpe conluio do poder.
Evangelho quer dizer boa nova. No vademecum de Cunha e Lira a primeira pessoa do plural não se reserva ao “povo de Deus”, mas aos “eleitos” do próprio cabaré, que administra o inferno parao resto da Nação.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado na segunda-feira 1 de fevereiro de 2021 no Blog do Nêumanne)
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