José Nêumanne
Bolsonaro leva sucessão do decano do STF ao fundo do poço ao garantir maioria de sete a quatro a ministros que só fazem política, e não justiça, em conchavos de convescotes habituais em Brasília
O procurador paulista José Celso de Mello Filho é o último ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) nomeado durante a transição da ditadura militar para a democracia, em um ano de vigência da Constituição de 1988. Foi indicado por José Sarney, que preferia seu ministro da Justiça, o advogado Saulo Ramos, para o lugar, mas este indicou o jovem assessor em quem confiava cegamente. A escolha não teve destaque nos noticiários da época. Ao contrário da longa permanência do escolhido na função de decano, ou seja, ministro mais antigo, quando, pela repercussão dos debates sobre processos de grande alcance midiático, como mensalão e petrolão, o posto mais alto da hierarquia judiciária passou a ser cobiçado por ocupantes de cargos no topo dos outros dois Poderes: o Executivo e o Legislativo.
As transmissões pela TV Justiça dos debates sobre a compra de apoio, pelo ex-presidente Lula, da maioria do Senado e da Câmara tornaram o Judiciário popular e, em consequência relevante. Ao contrário do que se poderia esperar, a disputa pelas 11 cadeiras do Olimpo judicante tornou o chamado “pretório excelso” mais poderoso e mais medíocre. O historiador leniente terá dificuldade de encontrar composição menos sublime da designação do tribunal comparado com a tenda dos generais romanos. Difícil será escolher entre os atuais ocupantes um que possa carregar a designação histórica dos pretores ancestrais. Num plenário de advogados e procuradores, com apenas dois juízes concursados (por coincidência, o atual presidente, Luiz Fux, e a futura ocupante da cabeceira da mesa, Rosa Weber), os casos de extrema parcialidade indesejável para a nobilíssima função são de Gilmar Mendes e Dias Toffoli.
O procurador mato-grossense foi elevado ao ápice da carreira após passagem pela assessoria da secretaria-geral da Presidência de FHC, que o promoveu a advogado-geral da União e, em seguida, ao STF. O paulista Dias Toffoli foi, enquanto advogou, funcionário do Partido dos Trabalhadores (PT) desde a assessoria jurídica das bancadas petistas na Assembleia Legislativa de São Paulo e na Câmara dos Deputados. E foi advogado-geral da União de Lula, que o alçou ao topo da carreira, na qual ele nunca teve destaque. Não é de estranhar que ambos tenham soltado corruptos condenados, acusados e indiciados nas instâncias inferiores da Justiça. E que unam seus esforços para perseguir procuradores e juízes que tenham processado e até condenado seus padrinhos de sempre.
Em entrevista recente, reproduzida no Blog do Nêumanne no Portal do Estadão, o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) Joaquim Falcão tratou do tema. Apesar de crítica, sua opinião é otimista em relação a uma característica de nomeados para o STF. Segundo ele, é comum não se tornem dependentes de quem os nomeou. Na entrevista lembrou os exemplos recentes de Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Luís Roberto Barroso, que, indicados pelo PT, só julgaram com base nos autos dos processos do mensalão e da Operação Lava Jato. Mas Toffoli e Mendes atuam com desenvoltura impressionante como fiéis depositários da confiança de quem os promoveu. Na atual conjuntura, atuam como “conspiradores-gerais da República” pela garantia de impunidade para seus padrinhos e transferem a própria missão para os que vierem a ser nomeados a partir de agora.
A fórmula garante que um plenário do STF sempre merecerá menos a confiança da sociedade, que os sustenta, do que o que vier a suceder-lhe. Nenhum brasileiro honesto e bem-intencionado tem por que prever que o presidente Jair Bolsonaro substitua por alguém que esteja à altura de quem o substituía. A volta dele ao aprisco do Centrão suspeito, que hoje comanda os destinos da República na pessoa do bedel Ricardo Barros, seu lugar-tenente na Câmara, e sua gestão criminosa na crise da pandemia, com a consequente recessão econômica, não autorizam nenhuma vã esperança nesse sentido. Para uma função em que a Constituição exige renome e honestidade, adotar o critério do “terrivelmente evangélico” mostra que seria mais provável o oposto: André Mendonça, sabujo de Lula, de Toffoli e dele prenunciava o desastre. Outros nomes aventados – Jorginho Oliveira, com seis anos de diploma, sem nunca haver exercido a advocacia, João Otávio Noronha e Augusto Aras – não ficam por menos.
E Bolsonaro surpreendeu para pior no método e na solução. Foi à casa de Mendes sacramentar com o anfitrião, Toffoli, mais Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre, a indicação de Kassio Nunes Marques, feito desembargador do Tribunal Regional Federal da 1.ª Região por Dilma Rousseff na vaga do quinto dos advogados. E para celebrar a publicação da escolha no Diário Oficial visitou Toffoli, que o recebeu com abraço caloroso, contagioso do novo coronavírus e de condenável despudor inconveniente do convescote. Que contou ainda com a presença de Marco Aurélio Costa, ex-dono do Piantella, palco falido das negociações menos republicanas da política na capital. A traição a mais uma de suas bandeiras de campanha, governando apenas para Brasília, enquanto inaugura pelo Brasil desde bica até posto de wi-fi, não poderia dar razões mais adequadas a quem põe a família no panteão da “nova política” dos velhos costumes de hábito. O presidente nacional do Cidadania, Roberto Freire, resumiu no Twitter o objetivo do conluio. “Acordo para livrar Bolsonaro e Flávio é amplo. Quem é da mamata ganha cargo. Quem é da bala compra armas e munições. Quem quer ocupar desmata, queima e garimpa. Quem é corrupto ganha o fim da Lava Jato”, ele escreveu.
Qual foi a pièce de résistance? Pizza de Camorra, naturalmente. E, sob a regência da promíscua famiglia Bolsonaro, servida antes de esfriar.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no Blog do Nêumanne na segunda-feira 5 de outubro de 2020)
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