José Nêumanne
Ministro das Comunicações confunde erário, que é público e permanente, com propriedade particular do chefe, que é pessoal, ao divulgar lista de verbas para UTIs como se fossem doações
As ditas “raposas felpudas” da política de Minas Gerais à época da democracia muito liberal regida pela Constituição de 1946 pensavam que para qualquer político profissional tornar-se figura nacional relevante precisava partir do prestígio eleitoral pessoal em seu Estado natal. Nestes nossos tempos de neoevangelismo mercantil, essa lição da sabedoria do PSD e da UDN de antanho nada vale, pois manda o brocardo evangélico “ninguém é profeta em sua terra”, simplificação vulgar da palavra de Jesus Cristo, tal como transcrita pelo evangelista Lucas: “Nenhum profeta é bem recebido em sua própria terra”. Aluízio Alves, contudo, não se tornou um nome de relevo na República brasileira por ter sido editor-chefe da Tribuna da Imprensa, jornal de Carlos Lacerda, no Rio, mas por seus mandatos de governador e deputado federal pelo Rio Grande do Norte, a ponto de iniciar dinastia de governadores, prefeitos e parlamentares potiguares até hoje.
Robinson Faria elegeu-se governador do mesmo Estado por razão independente de quaisquer ligações oligárquicas, mas não deixou de ter vencido o pleito pelo apoio de um agregado, Sílvio Santos, sogro de seu filho Fábio, que não conseguiu fazer seu sucessor por ter-lhe sucedido uma adversária. A professora paraibana Fátima Bezerra, que se tornou notória nacionalmente por ter cunhado a palavra “gópi” para definir o impeachment da correligionária petista Dilma Rousseff, foi o governador mais votado pelos potiguares na História e teve sua atuação nacional ofuscada pela do jovem deputado federal. Fábio foi nomeado ministro das Comunicações do desgoverno de Jair Bolsonaro pelo parentesco. O SBT do animador de auditório, notório por bajular governantes, aplaudiu e apoiou o chefe do Executivo, que considera o restante da chamada “mídia” inimiga mortal, em especial a Globo, líder em audiência. Outro ponto em comum de Robinson com Jair Messias é que ele foi processado pelo Ministério Público sob a acusação da mesma prática de extorsão de funcionários fantasmas bem remunerados que aflige a famiglia presidencial.
Nesta quadra sombria da pandemia de covid-19, Fábio passou a protagonizar ainda mais a cena administrativa nacional quando usou sua pasta para divulgar valores distribuídos pela União para o Sistema Único de Saúde (SUS) no atendimento aos casos graves da covid-19, provocada pelo novo coronavírus. Fê-lo com a intenção de responder à ação conjunta dos governadores de São Paulo, João Doria (PSDB), do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), e da Bahia, Rui Costa (PT), reclamando ao Supremo Tribunal Federal (STF) da suspensão de verbas para funcionamento de unidades de terapia intensiva (UTIs) em postos públicos de saúde no plano nacional de combate à moléstia.
Fábio Faria não foi propriamente original. A confusão entre público e privado é um hábito arraigado nos clãs Faria e Bolsonaro, como atesta a denúncia de peculato pelo Ministério Público do Rio contra o primogênito do presidente. A transformação de ex-aliados tornados adversários políticos em inimigos figadais fica patente nas filiações partidárias dos Estados que reclamaram ao STF da redução de UTIs de dezembro para janeiro. E a mistura de mentira e insinuação de corrupção contra governadores é prática corrente da narrativa eleiçoeira da extrema direita militarista e golpista.
A ação de Doria, Dino e Costa foi rapidamente atendida pela relatora sorteada na cúpula do Judiciário para julgar a causa: Rosa Weber concedeu a liminar, a ser julgada pelo plenário. E argumentou, de forma categórica: “É de se exigir do governo federal que suas ações sejam respaldadas por critérios técnicos e científicos, e que sejam implantadas, as políticas públicas, a partir de atos administrativos lógicos e coerentes. E não é lógica nem coerente, ou cientificamente defensável, a diminuição do número de leitos de UTI em um momento desafiador da pandemia, justamente quando constatado um incremento das mortes e das internações hospitalares”. E mais: “Afigura-se o perigo da demora, que se revela intuitivo frente aos abalos mundiais causados pela pandemia e, particularmente no Brasil, diante das mais de 250 mil vidas vitimadas pelo vírus espúrio. O não endereçamento ágil e racional do problema pode multiplicar esse número de óbitos e potencializar a tragédia humanitária. Não há nada mais urgente do que o desejo de viver”, concluiu, com ênfase.
A lição de espírito público e empatia humana, emanada da decisão da ministra, dificilmente será bem recebida por Fábio Farinha, Eduardo Pesadelo e Jair Boçalnaro. A nota oficial do Ministério da Saúde a esse respeito abusou do tom de cantina de caserna, ao concluir: “O pedido solicitado à nobre ministra é injusto e desnecessário, uma vez que o SUS vem cumprindo com as suas obrigações. Cabe, portanto, a cada governo fazer a sua parte”. Dois dias depois da decisão de Rosa Weber, o chefe de Farinha e Pesadelo, charlatão-mor da República Jair Boçalnaro, voltou a adotar retórica negacionista e desumana. Num encontro rotineiro com fanáticos seguidores, disparou: “Parece que quanto mais morrer, melhor para alguns setores da sociedade brasileira. Somos a oitava economia do mundo, nosso IDH não é tão bom perto do Primeiro Mundo. O que leva nosso país a ser o 26.º em morte por milhão de habitantes? Alguma coisa está acontecendo por aqui. Só pode ser o tratamento precoce, não tem outra explicação. Por que a grande mídia teima em criminalizar quem fala isso?”.
Resta saber se, na reunião do plenário para decidir sobre o pedido de Doria, Dino e Costa, os outros dez ministros do “pretório excelso” entenderão a aula de gestão pública e amor ao próximo dada por Weber.
- Jornalista, poeta e escritor