No Blog do Nêumanne: O poder supremo de admitir o “inadmissível”

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José Nêumanne

Há um ano, Bolsonaro demitiu Santini por achar “inadmissível” voar da Suíça a Brasília com escala na Índia em jato da FAB, e agora fez dele número 2 da Secretaria-Geral da Presidência

Em 28 de janeiro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro mandou exonerar o então secretário executivo da Casa Civil da Presidência da República, Vicente Santini, ao ser informado pela coluna de Bela Megale, no Globo, de que ele voltara de Davos para Brasília, com escala em Nova Délhi, em avião da Força Aérea Brasileira (FAB). “É inadmissível o que aconteceu. Ponto final”, disse, então, após acentuar que o que o burocrata fez não seria ilegal, mas “completamente imoral”. Naquele dia, Santini foi nomeado para outro cargo: assessoria especial da Secretaria Especial de Relacionamento Externo da mesma Casa Civil. Horas depois, Bolsonaro cancelou essa nomeação. Mas seus filhos Flávio e Eduardo lembraram que, durante a campanha, o serviçal providenciara segurança extra para Michelle Bolsonaro – por intermédio de um irmão. Em setembro de 2020, Santini foi nomeado assessor do Ministério do Meio Ambiente.

Um ano e oito dias depois da exoneração, Santini voltou ao Palácio do Planalto com pompa e circunstância. O disponível Diário Oficial da União publicou na sexta-feira, 5 de fevereiro, a nomeação dele como secretário executivo, segundo cargo na hierarquia, da Secretaria-Geral da Presidência da República. A pasta tem sido refúgio seguro para íntimos do clã presidencial. Era ocupada por Jorge Oliveira, indicado para ministro do Tribunal de Contas da União (TCU) em transação nebulosa em que o ex-presidente José Múcio Monteiro, de forma surpreendente, se aposentou dois anos antes de completar o prazo previsto, para possibilitar a ocupação da única vaga de provimento exclusivo da Presidência da República. Jorginho, como é conhecido na intimidade palaciana, é filho de um antigo serviçal do gabinete de Jair na Câmara e tem experiência de calouro na prática da advocacia. Para a pasta Bolsonaro já anunciou Onyx Lorenzoni, que era chefe da Casa Civil à época da viagem “inadmissível”, mas perdeu o cargo por óbvia ineficiência, o mesmo motivo de sua saída do Ministério da Cidadania, agora reservado para outro assecla do Centrão. De ineficiência em ineficiência Onyx pula de pasta a pasta.

Conforme a edição de 1999 do Dicionário Aurélio informa na página 1.089, “inadmissível” é o que “não pode ou não deve ser admitido”. E “imoral” é “contrário à moral, desonesto, libertino” (página 1.080). Embora o conhecimento e o manejo das palavras não sejam habilidades visíveis do chefe do Executivo, talvez seja tolerante demais atribuir a guinada de 360 graus no uso de nobres conceitos à crassa ignorância do vernáculo em prática nos palácios presidenciais e na intimidade do lar. Trata-se, simplesmente, da adoção da “novilíngua”, idioma do domínio do Grande Irmão, símbolo do totalitarismo imaginado no clássico 1984, de George Orwell, metáfora do nazi-fascismo e do stalinismo soviético no século 20.

A falta de intimidade do chamado primeiro magistrado federal com o vernáculo tem sido desculpa antiga e longeva dele. Em outubro de 1987, a revista Veja deu conta da existência da Operação Beco Sem Saída, liderada pelos capitães Jair Bolsonaro e Fábio Passos, que planejava a explosão de bombas em quartéis do Exército e na adutora do Rio Guandu. Condenado nas instâncias inferiores por 3 a 0, o atual presidente foi absolvido por 9 a 4 pelo Superior Tribunal Militar (STM), que considerou a seu favor laudos “inconclusos” (não concluídos, inacabados, ainda conforme o  Aurélio), e isso lhe rendeu a absolvição. Mas não a anistia moral do ex-presidente Geisel, cuja fotografia emoldura a parede do gabinete que o condenado por terrorismo ocupou por quase três decênios na Câmara. “Mau militar”, definiu o líder da ala chamada de Sorbonne da elite fardada naqueles tempos responsável pelo currículo da Escola Superior de Guerra (ESG).

Os fatos desse processo absurdo não estão sob sigilo judicial. Ao contrário, são narrados em detalhes no livro O Cadete e o Capitão, do repórter Luiz Maklouf de Carvalho, o mesmo que revelou no Jornal do Brasil, em 1989, o depoimento da enfermeira Miriam Cordeiro sobre proposta de Lula de abortar a filha deles fora do casamento (Lurian), durante a campanha presidencial contra Collor. E entrevistou Paulo de Tarso Venceslau, no Jornal da Tarde, sobre corrupção nas administrações  municipais petistas de Campinas e São José dos Campos, em 1997.

Muitas chuvas já inundaram Belo Horizonte desde aquele verão e as enxurradas não carregaram as evidências de que o emprego licencioso de palavras que não admitem duplo sentido pelo chefão da república das bananas podres não pode ser atribuído apenas a suas carências de inteligência e notório saber. Depois da vitória espetacular de seu governo nas eleições para a presidência da Câmara e a do Senado, Sua Insolência deve sentir-se confortável para negar o inegável. Trata-se de não assumir responsabilidade por mais nada, desde que o Centrão garanta a sobrevivência de seu governo e a extinção das forças-tarefas de combate à corrupção, que os protege. Nem mesmo sobre a palavra dada, à qual atribui o significado que lhe aprouver, pois sabe que este será adotado pelo gado que muge às portas do Palácio do Alvorada ou aos robôs bem pagos do gabinete do ódio, que nem o Supremo Tribunal Federal (STF) consegue devassar. Quem quiser saber aonde isso pode levar leia a entrevista do senador Lasier Martins no Blog do Nêumanne no portal do Estadão (https://politica.estadao.com.br/blogs/neumanne/no-brasil-ta-tudo-dominado-diz-lasier/) e o artigo de Almir Pazzianotto publicado na página 2 do Estadão de 8 de fevereiro de 2021, Golpe de Estado (https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,golpe-de-estado,70003608618). Está tudo lá.

*Jornalista, poeta e escritor

Para ler no Blog do Nêumanne, Política, Estadão, clique aqui.

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