José Nêumanne
Advogado desconhecido que inventa no currículo títulos que não conquistou e se esquece de corrigi-los nos nove anos passados como desembargador tem moral para assumir uma cadeira no Supremo?
A Constituição exige do presidente da República, além das considerações rotineiras de idade mínima e máxima, duas condições para que indique um membro do Supremo Tribunal Federal (STF): notável saber jurídico e reputação ilibada. O advogado piauiense Kassio Nunes Marques dispõe dessas qualidades para ir às sabatinas da Comissão de Constituição e Justiça e do plenário do Senado, encarregados de julgar se tem mesmo esses predicados, na aparência fáceis de ser constatados ou contestados?
Vamos aos fatos. O cidadão em questão é advogado de ofício e, como tal, foi indicado por chefões políticos de seu Estado para um lugar no plenário do Tribunal Federal Regional da 1.ª Região (TRF-1), em Brasília, como unanimidade. E continua agora a merecer a benemerência dos dois lados do espectro ideológico em que o Brasil se divide, desta vez para ocupar a cadeira do procurador paulista José Celso de Mello Filho, que se aposenta esta semana, deixando o posto de decano da mais alta Corte de Justiça. Foi levado à presença do encarregado da indicação pelo filho primogênito deste, o senador Flávio Bolsonaro, e pelo advogado da famiglia até ter sido pilhado por abrigar num escritório falso de advocacia em Atibaia, na Grande São Paulo, o notório Fabrício Queiroz. Isso ocorreu no momento da prisão, quando o cidadão em questão negava, e continuou negando durante muito tempo, qualquer envolvimento na prisão no imóvel de sua propriedade. Frederick Wassef foi afastado da defesa do parlamentar num inquérito do Ministério Público do Rio sobre desvio de verbas públicas no gabinete deste na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro usadas para pagar funcionários acusados de ser fantasmas e desviadas para contas administradas pelo subtenente PM do Rio e por sua mulher, Márcia Aguiar. Ambos estão agora em prisão domiciliar, portando tornozeleiras.
A indicação de Kassio foi logo abençoada pelo governador de seu Estado natal, Wellington Dias, e pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, ambos do PT. O portador mais entusiástico de sua bandeira tem sido do lado oposto em termos ideológicos: o senador Ciro Nogueira, presidente e, portanto, herdeiro de Paulo Maluf, corrupto símbolo desde a época em que Bolsonaro respondia a inquérito militar por tentativa de pôr bombas em quartéis e na adutora do Rio Guandu para chamar a atenção para os baixos níveis do soldo militar. Por ele, o responsável pela indicação mudou até sua pregação da hidroxicloroquina como panaceia para a covid-19, pela adoção de um novo panteão: sua companhia à mesa para tomar o refrigerante popular caipira paulista tubaína, em vez de vinhos de R$ 10 mil a garrafa, que passaram a ser signos da corrupção. Ora, vejam!
Kassio Nunes Marques, num gole só de tubaína, fez passar pela goela presidencial dois dribles da vaca para contornar a eventual falta do notório saber jurídico e da reputação ilibada. O saber jurídico do advogado piauiense, promovido a desembargador no quinto dos advogados, que não costuma apurar currículo de ninguém, adiou para nove anos depois de sua entrada na segunda instância da pirâmide judicial a discussão sobre senões na apresentação de armas do saber do escolhido para o pretório por menos excelso que costume ser. Ninguém é capaz de apontar um grande feito profissional do cidadão em seus anos de debates forenses no Piauí ou em Brasília. E agora já é possível saber que essa é a desqualificação menos relevante de sua biografia profissional.
A eventualidade de sua elevação de causídico de rala fama fez o ignoto tornar-se farsante. No currículo foram encontradas evidências que levaram, por exemplo, o professor Carlos Alberto Decotelli a bater o recorde de brevidade no Ministério de Educação: cinco dias. Dr. Marques inventou uma pós-graduação, a que a Universidade de La Coruña, na Espanha, não autorizou a menção. No mesmo documento, que sobreviveu sem correção por quase um decênio até a apresentação do candidato ao STF, uma invenção dele, um curso de “Pós-Doctor”, simplesmente inexiste. Nem sequer existe na Universidade de Messina, na bela, histórica e romântica Sicília de Lampedusa e da Máfia, um curso com essa denominação. Meu pai, exigente na palavra do que o presidente mais exige de seus seguidores – um cidadão de bem –, não diria que dr. Kassio preenche os requisitos para essa nomeada. Seu Anchieta não está mais entre nós para ficar estarrecido com o fato de que um trapaceiro, como o definiu o desembargador Walter Maierovitch, venha a subir ao topo do Olimpo, ao lado da deusa Têmis, cuja estátua orna a entrada da casa onde vai trabalhar.
Uso os tempos não condicionais do verbo porque não me resta dúvida alguma de que o substituto do mais loquaz dos ministros que tomaram assento na Corte depois da Constituição de 1988 será mesmo o piauiense. Pois, à falta de um currículo para chamar de seu, terminou sendo adotado pelos picaretas da política para limparem a biografia deles, maculada por faltas muito mais graves do que mentiras sobre o saber jurídico, que não lhe serão cobradas nas sabatinas e na votação a que será submetido.
Por isso, cobrar de Wassef, Flávio e Jair Bolsonaro, Ciro Nogueira ou Wellington Dias é insuficiente. A fatura da aceitação de alguém que falsifica a classificação que autoriza a galgar ao posto mais alto da própria carreira profissional ou acadêmica pode ser estendida à facção dita “garantista” do STF, os nunca excelsos Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski à frente, mas não os únicos. E mais ainda, muito mais, aos nada nobres senadores, de cuja indiferença a população fica bestializada, tomando emprestada a definição o historiador José Murilo de Carvalho sobre a proclamação desta insana e imunda República.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no Blog do Nêumanne, na segunda-feira 12 de outubro de 2020)
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