Um ex-ministro da Fazenda achacou no gabinete e outro vendeu influência sobre Lula e Dilma
Nunca antes na História deste país um ex-ministro da Fazenda havia sido preso na vigência do Estado Democrático de Direito. Agora foram dois numa semana. O primeiro, o economista Guido Mantega, foi acusado de haver achacado um grande empresário, Eike Batista, estrela do time dos privilegiados amigos do reizinho Lula entre os campeões mundiais no usufruto de benesses do BNDES. O outro, o sanitarista Antônio Palocci, dom Paló, é suspeito de ter beneficiado a maior empreiteira brasileira, a Odebrecht, para a qual trabalhou como despachante de luxo na mais alta cúpula do governo federal, que, na prática, foi posto por ele a serviço dela em negócios escusos em África, Zoropa e Bahia. Ambos, como é público e notório, foram ministros de Lula e Dilma. Mas, como é voz geral no território nacional e no planeta, Lula e Dilma são gente honrada.
A frase que abre o primeiro parágrafo deste texto é reconhecida como parte essencial da retórica grandiloquente, arrogante e fantasiosa com que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva vendeu o sonho do consumo compartilhado, que virou pesadelo coletivo. Ao longo de 13 anos, 4 meses e 12 dias, ele e sua afilhada, protegida e sucessora, Dilma Vana Rousseff Linhares, assumiram o poder na República por três mandatos e quase a metade do quarto, todos abençoados pela vontade popular. A última frase parodia um dos mais brilhantes textos já produzidos por um poeta e dramaturgo, o britânico William Shakespeare. Na tragédia Júlio César, Marco Antônio, candidato a sucessor do conquistador e, como este, também um brilhante tribuno, carregando nos braços o cadáver esfaqueado do chefe político e militar que com tropas e leis erigiu a Europa, insistia o tempo todo que seu assassino, Brutus, era um homem honrado. Com a junção dessas frases, este autor pretende desmascarar a verdade dolosa e dolorosa que começa a emergir da ilusão gloriosa com um legado de miséria e dor de uma era de mentira e engodo.
Guido Mantega subiu com vagar os degraus do panteão petista até atingir o máximo que poderia alcançar, prestando os serviços que dele poderiam esperar seus manipuladores. Economista formado na USP, professor da Fundação Getúlio Vargas, virou espírito santo de orelha do grande líder popular quando o colega Aloizio Mercadante Oliva caiu em desgraça por ter soprado um palpite infeliz e fatal na primeira eleição disputada pelo chefe contra o sociólogo, também da USP, Fernando Henrique Cardoso. Filho do general Oliva, que fez carreira militar na ditadura, ocupando postos de comando à época da guerra suja contra a esquerda armada, Mercadante convenceu o candidato do PT à Presidência em 2002 a denunciar o Plano Real do adversário tucano como “estelionato eleitoral”. Mantega fora assessor de Paul Singer, figurão petista, quando o respeitado colega chefiara a Secretaria de Planejamento na gestão municipal de Luiza Erundina em São Paulo. Mantega publicou seu livro de estreia com prefácio do figurão tucano. Depois, com Palocci e Mercadante Oliva no ostracismo, foi ministro do Planejamento, presidente do BNDES e, enfim, ministro da Fazenda, após um escândalo ter derrubado o ex-guerrilheiro e ex-prefeito de Ribeirão Preto do alto posto no qual conspirava contra o chefe da Casa Civil de então, José Dirceu, pela ambicionada sucessão do chefão de todos no lugar mais alto da República.
Não dá para comparar Guido Mantega com Antônio Palocci Filho. Este passou pela prefeitura de Ribeirão Preto, onde, prestando um tributo ao passado de lutas, instalou um escritório de representação das Farc colombianas no município que governava. Lá deixaria um rastro de suspeitas da corrupção. Por elas, contudo, passou, incólume colosso, administrando com jeito, talento e sorte seu surfe na crista da onda do poder petista. Tudo começou quando Celso Daniel foi executado e Palocci ocupou o lugar do ex-prefeito de Santo André no comando da primeira campanha vitoriosa do chefão do PT à Presidência. Em seu governo tornou-se poderoso czar da economia, como antes haviam sido Delfim Netto na ditadura e Pedro Malan no duplo mandarinato do PSDB sob a égide do Real. Fiador do compromisso do ex-sindicalista com o mercado financeiro local e mundial, afugentou na campanha a ameaça do calote internacional e deu continuidade à gestão da política austera e bem-sucedida do antecessor. Tornou-se enfant gaté da burguesia cabocla, jogando por terra quaisquer desconfianças e construindo um sólido pacto com o capitalismo, de forma a dar a impressão de que nada mais deteria a prosperidade com conteúdo social, que parecia tornar possível um futuro sustentável de fartura e paz.
Mas Palocci protagonizou um dos espetáculos mais nefandos da História da República ao violar, para evitar a própria degola, o sigilo bancário do caseiro de uma mansão suspeita montada por amigos do interior de São Paulo, onde circulavam prostitutas de luxo e malas de dinheiro. Francenildo dos Santos Costa nunca mais se recuperou dos danos provocados pelo asqueroso episódio. Mas muito não tardou para o ex-guerrilheiro que virou jardineiro do fino canteiro de flores da plutocracia nacional voltar por cima do filé com champã. Coordenou a campanha da sucessora indicada pelo sindicalista, Dilma Rousseff. E dom Paló assumiu a Casa Civil, enquanto seu antigo rival José Dirceu enfrentava dissabores com a polícia e a Justiça no mensalão. Só que, uma vez mais, derrubaram-no seus métodos heterodoxos de usar os cargos de poder na República como vias ilícitas para lhe engordar as contas privadas. O instrumento da trajetória, uma consultoria, devolveu-o ao conforto do esquecimento. Mas não à pobreza. Em recente entrevista coletiva, auditores da Receita, procuradores da República e policiais federais contaram à imprensa detalhes de como ele continuou acumulando fortuna no oblívio.
Seu advogado, ex-presidente da OAB e também defensor de Mantega e Lula, José Roberto Batochio, apelou para uma comparação estapafúrdia com a ditadura de 1964 para livrá-lo de todo mal, amém. O criminalista também acusou o preconceito contra a origem peninsular de dois dos clientes e dele próprio de comprovar que a denominação da Operação Omertà (do dialeto napolitano humildade, que define o pacto de silêncio dos mafiosos) deve-se a preconceito contra oriundos da Itália. É compreensível. Que mais argumentar para enfrentar a lógica implacável e os detalhes inquestionáveis dos fatos arrolados pela acusação?
Uma semana antes, o sucessor de Palocci no comando da economia sob Lula, e que foi mantido por exigência deste no governo Dilma, já tinha sido preso para não destruir provas na Operação Arquivo X. Nela o outro ex-ministro da Fazenda fora acusado de achacar, como nunca antes tinha ocorrido, um empresário e beneficiário da “nova matriz da política econômica” que infelicita o povo pobre do Brasil. O jeito foi Batochio acusar o juiz federal que decretou a prisão, Sergio Moro, de desumanidade, pois a ordem de prisão foi cumprida no estacionamento do hospital, no qual acompanhava a dita mulher num procedimento de saúde.
Nossa tragédia bufa é um ex-ministro da Fazenda de dois ex-presidentes da República ser preso, sob a acusação de achacar no próprio gabinete e o juiz que manda prendê-lo, criticado, porque a mulher do dito cujo tem câncer. E, em seguida, outro, flagrado gerindo uma conta conjunta do partido dito operário com uma empreiteira, ser tratado como vítima de um novo Estado de exceção por seu ilustre causídico na semana em que, numa ironia da deusa da História, Clio, as Farc depunham as armas na Colômbia. O poderoso dom Paló é duro na queda e já sobreviveu a dois tropeções. Resta saber se, após este terceiro beijo mortal da justa, o cappo di famiglia sairá vivo. Assim como o chefe de todos os chefes e sua herdeira presuntiva.
Mas não tem nada, não: que importância tem isso, se o ilibado Lula de nada sabia e a imaculada Dilma nunca nada autorizou? E se sua melhor defesa é, ao ser pilhado, perguntar sempre com ar de espanto: cadê os outros?
José Nêumanne
Jornalista, poeta e escritor
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