No Blog do Nêumanne: Donald afunda no próprio cuspe. Mas, e Jair?

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José Nêumanne

Escândalo inócuo, provocado pelo presidente dos EUA a 17 dias da posse de Biden, deveria alertar seu pato Bolsonaro a não tentar repetir lorota da fraude eleitoral se perder em 2022

O mundo parecia levar na gozação a cantilena golpista do presidente da maior potência militar e geopolítica do mundo, Donald Trump, de tentar ganhar no gogó golpista e na empáfia negacionista a disputa eleitoral em que foi amplamente derrotado. No colégio eleitoral, 306 a 232, e na votação popular, 81 milhões e 400 mil a 74 milhões e 200 mil. Mas o derrotado resistiu além da lógica e da sensatez. O ano novo começou com a notícia de que senadores republicanos tentariam reverter a decisão dos cidadãos norte-americanos no Senado, ainda presidido até 20 de janeiro pelo vice-presidente Mike Pence, da chapa vencida. Tudo parecia decidido, definido e distante até que o resiliente perdedor protagonizou escândalo de dimensões ciclópicas e, conforme observadores relevantes, históricas.

O jornal The Washington Post publicou a notícia e divulgou em suas redes sociais a gravação de um telefonema impertinente e antidemocrático do presidente pressionando o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensperger, a “encontrar” votos suficientes para reverter sua derrota para Joe Biden naquele Estado. Isso foi feito e provado na reprodução de um telefonema que durou uma hora, feito no sábado 2/1. O jornal obteve a gravação da conversa em que Trump repreende Raffensperger, tenta bajulá-lo, implora-lhe que aja e o ameaça com vagas consequências criminais se o interlocutor se recusar a obedecer-lhe. Chega a alertar Raffensperger de que este assumirá “um grande risco”.

Não bastaram a inconveniência e a grosseria do chefe do Executivo a apenas mais 18 dias na Casa Branca, publicadas pelo veículo de comunicação que revelou ao mundo o celebérrimo caso Watergate. Pois assomou ao noticiário o vulto de um dos repórteres que assinaram a reportagem que levou Richard Nixon a renunciar para evitar o impeachment inevitável. Parceiro de Bob Woodward na cobertura real e como autores e protagonistas do best-seller em livro e filme Todos os Homens do Presidente, Carl Bernstein engrossou o caldo venenoso. Ele cobrou a renúncia de Trump e disse mais: que o grampo atual contra o presidente dos EUA é pior que o de Watergate. “Esta é a fita definitiva de uma arma fumegante”, disparou Bernstein, em entrevista à CNN.

A exemplo de Nixon, que mereceu, à época das manifestações de protesto contra a intervenção militar dos EUA no Vietnã, a alcunha depreciativa de Tricky Dick (Ricardinho Pilantra), Trump abusou da regra três, em que, como alertava a canção de Toquinho e Vinicius de Moraes, “o menos vale mais”. Fê-lo ao abrigar na Casa Branca delinquentes políticos capazes de violar a lei para prestarem serviços ilícitos ao chefe do Executivo. Essa patota de compadritos empreitou o arrombamento do escritório de campanha do democrata George McGovern no edifício Watergate para furtar documentos sigilosos. Para piorar as coisas, comentou o assalto com os responsáveis por ele e assegurou que não o havia feito. Só que as conversas no Gabinete Oval eram gravadas desde a presidência Kennedy. A primeira gravação foi feita no despacho de Lincoln Gordon, então embaixador no Brasil, em que foi selado o apoio da democracia dos “pais fundadores” à ditadura militar brasileira, como registra o documentário O Dia que Durou 21 anos, de Camilo Tavares.

Com o apoio de Katherine Graham, proprietária, e Ben Bradlee, editor-chefe, o Washington Post passou a publicar diariamente o avanço das investigações com a ajuda de uma fonte misteriosa do Pentágono, que confirmava as informações corretas e avisava sobre as pistas falsas. Com o codinome de Garganta Profunda, título de um filme pornográfico de muito êxito, esse funcionário foi fundamental para o sucesso da empreitada. Outro servidor público de muita serventia foi o procurador Archibald Cox, cuja investigação implacável levou Nixon a renunciar. O irônico é que McGovern não tinha, como ficou provado na eleição, nenhuma chance de derrotá-lo. Como Nixon, Trump cometeu a suprema imprudência de derreter sua estratégia golpista cometendo o erro de desprezar a possibilidade de ter seu telefone grampeado, seja por um assessor que não goste dele, seja do próprio interlocutor, como “advertiu” Allan dos Santos.

Dificilmente Trump repetirá Nixon. Mas talvez possa servir de exemplo para seu fâmulo brasileiro, Jair Bolsonaro, que desde seus tempos de baixíssimo clero na Câmara dos Deputados alimenta a ilusão de tirar vantagem de denúncias de fraude eleitoral e da solução estúpida do voto impresso. Recentemente, em declaração na qual negou a esperteza de quem venceu uma disputa eleitoral em que era azarão, o capitão terrorista denunciou ter sido fraudado o pleito por ele vencido. E agora se aproveita disso para “prever” nova fraude na disputa de 2022, em que pretende se reeleger. A possibilidade de voto impresso ser aprovado pelo povo e pelas instituições é muito remota. Mas o jurista Miguel Reale Júnior, um dos autores do processo de impeachment contra Dilma Rousseff, do PT, advertiu: “A grave menção de que, ‘se não houver voto impresso, esqueça-se a eleição de 2022’, somada à corte que Bolsonaro faz às polícias militares, instigadas contra a imprensa livre, forma um quadro preocupante diante da possível derrota do presidente, que terá preparado o terreno para uma ‘lei marcial’, tal qual a pensada por Trump, dando fim à democracia”, que, aliás, nenhum dos dois, o patrão ianque e o servo patrício, jamais cultuou.

Agora Donald afundou na saliva do golpe retórico, que não tem como dar certo. Ainda que isso não sirva de lição para seu pato latino, convém atentarmos para a advertência judiciosa do jurista. Xô, Bolsonaro!

*Jornalista, poeta e escritor

(Publicado no Blog do Nêumanne na segunda-feira 4 de janeiro de 2021)

Para ler no Blog do Nêumanne, Política, Estadão, clique aqui.

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