Delação de Funaro expõe as vísceras do poder republicano em seu péssimo estado
A divulgação dos vídeos da delação premiada do contador Lúcio Funaro, ao longo do feriado de Nossa Senhora Aparecida, caiu como uma bomba norte-coreana no colo do cidadão brasileiro em seu pleno gozo de lazer. O depoimento do encarregado de entesourar e lavar as propinas cobradas pela cúpula do PMDB, associada à cleptocracia petista sob Lula e Dilma entre 2002 e 2016, é longo e lógico. Narra com a mesma frieza dos carrascos nazistas desfiando fatos sobre o Holocausto e é de uma verossimilhança que só pode ser definida como assustadora, embora não necessariamente surpreendente. Os agentes e procuradores federais não exigirão do delator para lhes conceder o prêmio apenas os R$ 40 milhões que terá de pagar como penitência, mas provas documentais, muito sólidas e muito fartas, para negociar a redução de suas penas. Depois da mancada sesquipedal de Rodrigo Janot e seus “homens de confiança”, em particular Marcelo Miller, não é mais possível dar tudo o que os delatores pedem e em troca pouco deles exigir.
No entanto, a burocrática, quase monótona, narrativa do garoto de classe média alta paulistana deixa no ar, além da sensação de déjà vu, ou seja, de confirmação de outros depoimentos com entregas assemelhadas, brasas espalhadas sob os pés nus dos hierarcas do PMDB que, com Temer, se associaram à gatunagem explícita que esvaziou todos os cofres da República. Sua lista implacável, relacionada, denuncia os cachorros mortos de antanho, sendo o caso mais notório protagonizado por Eduardo Cunha, o ex-presidente todo-poderoso da Câmara que virou suco de carne moída, e donos de porcos, caso do trio que responde à segunda denúncia do citado Janot contra Temer, Moreira e Padilha.
O caso de Cunha é perdido. Os de Moreira e Padilha dependem de Temer. E o deste, propriamente dito, está pendurado na indulgência plena que a Câmara certamente conferirá na segunda denúncia o que já foi entregue na primeira: o perdão por mais de um terço dos votos dos deputados e a longa espera sob tempestade do que as urnas decidirem em outubro/novembro de 2018. Nesta situação de instituições de muletas, como as nossas, a jabuticaba constitucional que só permite punir o chefe do governo por delitos cometidos durante a gestão presidencial, assim como só se prende parlamentar que tenha cometido crime inafiançável, há pouco mais a esperar que não seja o perdão garantido sem seu dinheiro de volta.
De qualquer maneira, já dá para perceber que a impopularidade de Temer é um caso perdido. Ainda que os dados da economia favoreçam sua permanência. Sobretudo agora que já ficamos sabendo que a queda da inflação está cumprindo o que dela foi prometido: os pobres voltaram a consumir. Essa notícia, dada no Estadão do feriado, é, ao mesmo tempo, auspiciosa e reveladora sobre o governo. O prestígio político de seu chefe é tão baixo e tão cadente que nem boas novas inesperadas conseguem revertê-lo. Mas o que é pior ainda: a situação institucional é tão precária que os responsáveis por algo inexplicavelmente chamado de comunicação no entorno do chefe do governo não lembram sequer de botar a banda para tocar antes do anúncio do emissário de agora é tarde, el-rei é morto.
A manchete do Estadão desta segunda-feira não deixa dúvidas quanto a um dos efeitos da divulgação dos vídeos sobre o cenário de ruínas que captura a imagem do governo Temer. Antes de qualquer coisa, o vídeo da delação de Funaro provoca crise inevitável entre a Câmara, presidida por Rodrigo Maia (DEM-RJ), e o Palácio do Planalto.
A primeira dessas consequências é a exposição da fragilidade da defesa do presidente para se contrapor à óbvia inépcia, já constatada por quase todos, da denúncia de Janot por formação de quadrilha e obstrução de Justiça. Para interlocutores dos repórteres do Estadão no Planalto, a medida é mais uma ação de Maia para tentar constranger o governo e mostrar seu descolamento do presidente. O governo avalia que o deputado não tinha a obrigação de colocar os vídeos no site da Câmara. E não tinha!
O grave é que o episódio levou a um bate-boca público entre Maia e a defesa de Temer, justamente na semana em que a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara está para analisar o relatório da segunda denúncia contra o presidente, por obstrução da Justiça e organização criminosa. Neste sábado, 14, o advogado Eduardo Carnelós publicou nota criticando “vazamentos criminosos”. Maia contra-atacou. Carnelós recuou e, também em nota, disse que “jamais” imputou “a prática de ilegalidade” ao deputado.
Tudo parece ser verdadeiro. Os vídeos da delação de Funaro foram divulgados no site da Câmara com documentos relacionados à segunda denúncia contra Temer e os ministros Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Secretaria-Geral). O material foi enviado pela presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, com ofício expedido em 21 de setembro, uma semana após a Procuradoria-Geral da República (PGR) apresentar essa denúncia.
De acordo com a presidência da Câmara, no ofício não há menção ao sigilo do material. No domingo 15, por meio de assessoria, Cármen Lúcia afirmou que apenas oficiou a Maia e o relator do inquérito, Edson Fachin, é a autoridade máxima e única no processo. Segundo o gabinete de Fachin, a delação de Funaro não teve o sigilo retirado em nenhum momento.
O secretário-geral da Mesa Diretora, Wagner Soares, subordinado a Maia, determinou que os vídeos fossem divulgados no site da Câmara. O material subiu na íntegra no dia 29 de setembro, uma semana depois de o presidente da Câmara disparar duras críticas a Temer e ao PMDB em razão do assédio dos peemedebistas a parlamentares do PSB com os quais o DEM negociava filiação. Como se vê, nenhuma causa nobre no imbróglio.
A primeira nota de Carnelós com acusação de “vazamento criminoso” irritou Maia, que fez chegar a Temer sua insatisfação. “Não teve vazamento. O advogado é incompetente”, disse o presidente da Câmara à Coluna do Estadão. Em nota, Maia disse ainda ver com “perplexidade muito grande” ter sido tratado de “forma absurda” pelo advogado, acrescentando: “Depois de tudo o que fiz pelo presidente, da agenda que construí com ele, de toda defesa que fiz na primeira denúncia”. Só faltou choramingar e esfregar os olhos com a mão fechada.
Embora as imagens de Funaro impressionem o Planalto e tenham impacto no governo, a avaliação é de que essa nova polêmica com Maia pode trazer mais problemas para o presidente do que o conteúdo dos vídeos. No entorno de Temer, o teor da primeira nota de Carnelós foi considerado um “tiro no pé”. De fato, foi uma facada nas costas, que não atinge órgãos vitais como o coração e os pulmões. Maia não tem poder suficiente para atrapalhar a tramitação que caminha para a aprovação do relatório de Bonifácio de Andrade na CCCJ nem no plenário da Câmara. O problema é que quem já tem os problemas que Temer tem não precisa de um advogado que lhe crie mais, já que, ao que consta, ele está sendo pago para ajudar e defender, não para acusar quem não tem nada com o peixe e ainda pode atrapalhar, caso de Maia.
Por isso Temer mandou o advogado distribuir a segunda nota, na qual ele negou ter imputado “crime” a Maia, para amenizar a tensão com o deputado. O governo teme que parlamentares que se dizem indecisos possam aproveitar o impacto dos vídeos para fazer novas cobranças ao Planalto. A avaliação é de que isso poderia aumentar o impacto dos apoios, mas não tornar inviável o arquivamento da denúncia.
Esta é, infelizmente, nossa tragédia: revelações relevantes só servem para aumentar o custo da compra dos votos e não alterarão a natureza deles. É o caso de dizer que estamos no mato encarapitados na árvore e acuados pela cachorrada. Não nos basta o constrangimento de sermos governados por um acusado de forma consistente da participação no mesmo processo de corrupção que levou à deposição da titular da chapa pela qual ele foi eleito e a uma miríade de processos penais contra o chefe partidário e de governo que comandou o assalto generalizado aos cofres da República. Este começou a ser condenado por esses crimes. Ainda somos obrigados a conviver com a luta pelo poder entre o presidente e seus aliados de última hora pescados do do mais profundo pré-sal moral e cívico.
- José Nêumanne Pinto. Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no Blog do Nêumanne, Política, Estadão, na segunda-feira 16 de outubro de 2017)
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