No Blog do Nêumanne: Déjà vu

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A maior lição da França aos pretendentes à Copa do Catar é “jogar o jogo”, pois outros fatos tidos como inusitados, caso da diversidade de etnias e origens dos craques, têm sido registrados há 60 anos

José Nêumanne

Na exaustiva cobertura da Copa do Mundo na Rússia, o excesso de ex-jogadores e ex-treinadores nos canais de esporte não serviu sequer para mostrar que a maior qualidade da seleção campeã foi reunir os melhores jogadores com cidadania francesa em atividade e pô-los para jogar. “Ah, mas a Bélgica foi melhor”, reclamou a maioria deles. Uma das lições fundamentais do bom jornalismo, que as transmissões de futebol não podem desprezar, é respeitar os fatos. E sobre isso algo clama: França 1 x 0 Bélgica nas semifinais. Os campeões venceram quase todos os jogos e só empataram um, contra a Dinamarca. O resto é lorota besta. Nossa torcida adotou o canarinho pistola como ícone, desconhecendo que as aves canoras mais valorizadas em nossas gaiolas de feira livre são os canários belgas, que, se torcessem, teriam cantado a derrota dos pupilos de Tite.

Havia pretendentes com mais história em 2018 do que os companheiros de Pavard, zagueiro de pouca notoriedade que jogou de lateral direito e fez, sem favorecimento nenhum, um dos gols mais bonitos do torneio, um chutaço de sua posição original ao ângulo oposto ao defendido pelo lamentável goleiro argentino Caballero.

O Brasil disputou todas as Copas da Fifa e foi vencedor em cinco. Os italianos ganharam o segundo e o terceiro torneios ainda nos anos 30 e mais dois, em 1982 e 2006. Quatro. Agora não passou pela eliminatória nem pela repescagem. A Alemanha ganhou duas Copas quando era dividida ao meio, com o time da Ocidental, e mais duas depois de unificada. Quatro. Nesta saiu na fase de grupos. A Argentina venceu duas, uma com suspeita de favorecimento à época da ditadura militar e outra com um gol ilícito de Maradona, que ganhou a bizarra denominação de “mano de Dios”. Um disparate dos “hermanos” imaginarem que Deus possa ter abençoado uma trapaça. A Inglaterra, que disputa com a Itália a primazia de ter inventado a modalidade (football ou calcio), revelou-se anfitriã pouco educada ao levar o troféu no bico: o bico que apita. O jovem English Team ficou devendo aos adeptos do chuveirinho a esperança de levantar a taça em 2022.

Aí veio o galo azul e levou o boneco de ouro pela segunda vez. Este torcedor fanático, que acompanhou pela primeira vez o maior torneio do esporte que consagrou Terto, não se lembra de ter acompanhado na longuíssima programação “direto da Rússia”, sob os auspícios de São Basílio e sua horrenda catedral na Praça Vermelha, alguém que houvesse, pelo menos, consultado a Wikipédia velha de guerra para descobrir, de repente, que os campeões de 2018 não são propriamente despojados de História no quesito ludopédico.

Decerto direis que não vi nem ouvi tudo. Muitos microfones, várias câmeras e até rotativas se referiram ao feito único de um campeonato em território francês com dois gols de Zinedine Zidane e mais um de Petit a zero, no Stade de France. Foram feitas poucas referências a Michel Platini, um dos maiores craques europeus no fim do século 20. E foi, sobretudo, relegado ao esquecimento um dos maiores esquadrões de futebol de todos os tempos, que ficou em terceiro lugar da Copa da Suécia, em 1958, esmagando a então campeã Alemanha Ocidental por 6 a 3 na véspera da final em que o Brasil de Vicente Feola arrebatou seu primeiro título na História. Na semifinal, os gauleses, como se dizia há 60 anos, haviam sido massacrados por Vavá, Didi e Pelé (3) por 5 a 2, numa partida considerada uma das melhores e mais emocionantes de todos os tempos.

Se algum especialista se tivesse dedicado àquela partida e àquela seleção francesa, teria muitas razões para desprezar as análises apressadas segundo as quais, afinal, a França tinha vencido o Mundial porque tinha craques que não descendiam das tribos derrotadas por Júlio César. O elogio à variedade de origem e etnia, sempre bem-vindo, não atende propriamente ao quesito da originalidade. Fãs de Asterix e Obelix haviam execrado um time nacional que se deu mal na Copa da Suíça, no quintal de casa, em 1954, atribuindo o fiasco à ascendência de seus craques. Mas estes introduziram com todas as honras o futebol gaulês à galeria dos maiorais.

O maior goleador de uma Copa em todos os tempos foi Just Fontaine, cidadão francês nascido em Marrakesh, na África: marcou 13 vezes em seis partidas nos gramados suecos. Mais de dois gols por jogo, mais do que o dobro dos seis, dos quais três de pênalti, feitos pelo inglês Harry Kane, mais que o triplo dos quatro de Mbappé, a revelação francesa, de pai camaronês e mãe argelina. Zinedine Zidane, o Zizou, campeão em 1998 e ex-técnico do Real Madrid, da Espanha, pelo qual foi campeão europeu de clubes, é de origem argelina, como é francês nascido em Orã,a Argélia, é um dos maiores gênios da língua de Voltaire e Baudelaire, o pied-noir (pé preto) Albert Camus, Prêmio Nobel de Literatura de 1957.

Há 60 anos o meia armador campista Didi foi considerado o craque da Copa em que foi revelado o maior craque de todos os tempos, Pelé, que os franceses, já então, batizaram de “rei do futebol”. Mas os derrotados na semifinal sempre se queixaram de tê-la perdido por uma entrada desleal de Vavá no zagueiro Jonquet, fazendo o adversário disputar a partida quase inteira com dez jogadores e meio, pois não se permitia substituição. Contra 11, entre eles um adolescente de quase 18 anos nascido em Três Corações, Minas Gerais, que estreara na seleção um ano antes. Naquela partida, os brasileiros tiveram três gols anulados, um deles de Zagallo. A bola bateu no travessão e cruzou a linha do gol, mas o erro do árbitro só foi revelado nos jornais do dia seguinte por um clichê insuspeito. Hoje o chip na bola teria validado mais um, mas então ninguém reclamou, pois a dúvida foi geral.

Os brasileiros desmontaram em 1958 a infâmia de que fora a covardia dos negros do time que permitira a vitória do Uruguai no Maracanã em 1950. A geração francesa que fez feio em 1954 demoliu essa idiotice logo depois. Além de Fontaine, brilhou na Suécia um craque de ascendentes além das fronteiras da França: Kopaszewski era o sobrenome real do atacante Raymond Kopa, que mais tarde atuaria num dos ataques mais efetivos da história dos clubes de futebol mundial, ao lado do húngaro Puskas, do argentino Di Stéfano e do espanhol Gento: o do Real Madrid, primeiro e único pentacampeão em temporadas seguidas na Liga da Uefa, entre 1955 e 1960. Ele nasceu na França, mas descendia de poloneses.

Com sobrenomes que revelam sua mãe, filha de português, e seu pai, nascido na Alsácia Lorena, região limítrofe, historicamente disputada entre França e Alemanha, país origem de sua família paterna, Antoine Lopes Griezmann, ótimo exemplo da Europa sem fronteiras, foi escolhido pela Fifa o melhor jogador na final contra a Croácia, em Moscou.

O melhor jogador do Mundial de 2018, Luka Modric, vice-campeão do mundo, mostrou ao nosso supercraque Neymar Jr. que o brilho da glória só pode vir do suor. Griezmann, atacante do Atlético de Madrid, que propiciou o primeiro gol do jogo ao cobrar a falta que o croata Mandzukic desviou para o próprio gol, deu-lhe outra lição. Para entendê-la convém relatar a jogada que abriu o placar. O zagueiro croata roubou a bola do francês licitamente e o péssimo árbitro argentino Nestor Pitana, que marcou falta inexistente, porque foi ludibriado por Griezmann, que tropeçou no adversário. Ao simular, o craque do jogo (the man of the match) praticou atividade antiesportiva, passível de punição. Não levou cartão amarelo, o adversário foi prejudicado ao ter interrompido um contra-ataque e o lance terminou em gol. Talvez ele possa ser considerado o Neymar Jr, que deu certo. Pois nosso Peter Pan em chuteiras foi mais lembrado pelos 14 minutos que passou rolando no gramado em cinco partidas do Brasil no Mundial, merecendo o troféu de “bobo da Copa”. Ou seja: até para simular é preciso ser competente. E ficou evidente que papo de autoajuda em vestiário e brilho que não seja de suor não ganham partidas nem torneios.

Para encerrar, convém lembrar que na semifinal de 1958, depois que Fontaine empatou o jogo, um adolescente, menor de 18 anos, foi às redes, apanhou a bola e a levou calmamente ao centro do campo. Na partida seguinte, a Suécia abriu o placar, o veterano Didi repetiu seu gesto e levou o Brasil à conquista. Há vídeos disponíveis para Edu Gaspar mostrar à sua vítima favorita de sofrência. Quem sabe, pelo menos até a Copa do Catar, Neymar Jr., aos 26 anos, seja humilde para aprender, ao menos, com Pelé.

*Jornalista, poeta e escritor

(Publicado no Blog do Nêumanne segunda-feira 16 de julho de 2018)

https://politica.estadao.com.br/blogs/neumanne/deja-vu/

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