No Blog do Nêumanne: Cúmplices secretos do estuprador

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José Nêumanne

A exibicionista profissional Sara Giromini, seu “mito”, Jair Bolsonaro, e quem protege o anonimato do estuprador da sobrinha de dez anos que engravidou se associam a este no crime hediondo

A história é tão horripilante que simplesmente ao ver o título da notícia o impulso emocional é fugir dela, não querer nem saber. Uma menina de 10 anos foi engravidada após ter sido estuprada pelo tio. Escapar do horror do caso, contudo, não é possível. Simples assim. Urge encará-lo. Pelo simples fato de que é real e da realidade ninguém escapa, embora seja possível fugir da verdade inexorável dos fatos. Sim. Existem pedófilos, seres humanos abjetos que abusam sexualmente de crianças indefesas. O caso dessa menina do Espírito Santo é comum, mas não se encerra em si mesmo. A criança era abusada sexualmente pelo parente, irmão de algum de seus pais, havia quatro anos, ou seja, desde os 6 anos de idade. E a biologia nos torna a todos, culpados e inocentes, vulneráveis à eventualidade da gravidez de uma mulher que ainda não chegou à adolescência, mas já está em plena puberdade. No caso específico, neste país nada especial, o episódio tem consequências que podem ser consideradas iguais ou até piores do que o fato em si e suas causas.

O desenlace trágico, por implicar a perda da vida da criança gerada, produz resultados talvez tão terríveis quanto o crime imperdoável de um nefasto ser humano, se é que pode ser definido com essas duas palavras quem praticou o crime horrendo. Mas, infelizmente, esse inexorável fruto de uma violência sexual contra uma criança, mesmo inevitável pelas circunstâncias de tudo, não apaga as abominações praticadas pelos exploradores da miséria humana e suas convicções religiosas e morais.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), com todos os defeitos que tem, protege, pelo menos teoricamente, o direito à privacidade e ao anonimato da primeira vítima, a menor violentada. Além da dor inocente da perda do filho prematuro e não desejado, do trauma com que terá de conviver pelo resto da vida, a pequena capixaba também foi submetida à violação do próprio direito ao esquecimento. Nunca esse conceito, tão desejado em nossos tempos de quebra permanente da privacidade, foi tão necessário quanto o dela. Mas seu nome foi estampado nos paredões de fuzilamento das redes sociais, essas maravilhosas e abomináveis máquinas de distribuição rápida e massiva de dádivas e penas. Certa fanática do exibicionismo egocêntrico e insano, chamada Sara Fernanda Giromini, se autointitula Sara Winter, em homenagem a uma mulher de trajetória deplorável, espiã nazista de nobre e rica estirpe britânica, cujos membros frequentavam a intimidade do maior herói da paz dos tempos modernos, o primeiro-ministro Winston Churchill, literato de talento, orador respeitável, estadista e guerreiro iluminado. Tudo o que essa senhora persegue é a notoriedade, bezerro de ouro da sociedade submetida ao primado da glória, não nos campos de batalha, mas no fuzilamento cruel e covarde de reputações pelos logaritmos dos computadores. Caçadora de prestígio pelo caminho mais fácil da perversão, ela foi feminista soit-disant de esquerda e depois virou militante totalitária de direita, conectada com a tragédia torpe do racismo, da violência e da fratura da inocência. Foi em busca dessas migalhas apodrecidas do cruento banquete nazi-fascista que ela pretendeu liderar um grupo que se apelidou de 300 do Brasil, em homenagem aos 300 heróis do general espartano Leônidas, que enfrentou o poderoso exército do rei persa Xerxes no desfiladeiro de Termópilas, na Grécia antiga. Nunca passaram de 30 e, mesmo assim, ela, que bem merece ser comparada com o zero à esquerda que faltou à direita, em todos os sentidos, se jacta da ignomínia, a pretexto de banalizar o sagrado conceito da liberdade de expressão, garantida em Estados de Direito como o nosso. Por isso desafiou o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Morais ao pugilato tremendo e participou de um bombardeio da sede da mais alta instituição jurídica com fogos de artifício. Com justiça, foi presa. Por descuido da toga máxima, solta. Agora mostrou que a segunda decisão foi temerária. No gozo de imerecida liberdade, violou a lei, a infância e a inocência, rasgando o ECA, ao revelar em letras capitais o nome da vítima. Talvez por se sentir aliada, e cúmplice, do estuprador, não mencionou seu nome, como, aliás, ninguém o fez até agora, em omissão conivente. Preferiu açular grupos de fanáticos da fé a ameaçarem a paz e a vida de pacientes do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros, no Recife. Convocados por seu chamamento, arruaceiros abortistas e antiabortistas tentaram invadir o hospital, cujo endereço, também em letras capitais, foi por ela revelado. Tanto os vândalos da Comunidade Católica Porta Fidei, que insultaram o médico, Olímpio Barbosa, que fez a cirurgia para preservar a vida sã da pequena mãe de “aborteiro” *e a ela de “assassina”), covarde e cruel infâmia, quanto seus adversários deveriam ficar em casa. Em vez de contribuírem para a arruaça, preservando o inocente (no sentido jurídico) direito à paz e ao anonimato que o tio canalha tentou roubar da sobrinha. Vídeos que circulam na internet, assim como os que foram retirados do ar da lavra da fanática exibicionista, mostram a confusão. São provas de que o descumprimento da violação denunciada pelo advogado Ariel de Castro, especialista em direitos da infância e juventude consultado por Universa, segundo o UOL, estupra o artigo 17 do ECA e o 286 do Código Penal, que proíbe incitar publicamente à prática de crime.

Cúmplice do estuprador anônimo, assim como o são algumas autoridades e certos meios de comunicação que não o identificaram como deveriam, Sara Fernanda Giromini não merece a liberdade que usufrui por omissão da Justiça, acomodada e lerda. E para ser mais convincente em sua atual pose de estadista de araque, que interpreta sem convicção nem talento, o presidente Jair Bolsonaro já deveria ter, no mínimo, parado de defender e avalizar esses asseclas, que dizem segui-lo e tentam imitá-lo.

*Jornalista, poeta e escritor

(Publicado no Blog do Nêumanne, na segunda-feira 17 de agosto de 2020)

Para ler no Blog do Nêumanne, Política, Estadão, clique aqui.

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