José Nêumanne
O presidente foi eleito também por antilulistas e por quem não suportava mais a roubalheira do PT e seus asseclas, e, de fato, atendeu ainda a apelos da direita saudosa da ditadura militar
O candidato do PSL à Presidência da República foi favorecido pela conjuntura da eleição presidencial de 2018 mercê do fato de, ao contrário de todos os oponentes da esquerda e do centro tradicional, não ter seu nome citado nos autos da Operação Lava Jato, sob o comando do então juiz Sergio Moro. O fator antilulista foi fundamental para lhe dar a vitória final, no segundo turno. Mas, da mesma forma que é ilusório imaginar que ele seja isento de malversação do erário por não constar do propinoduto da Odebrecht, também o é imaginar que o que ele chama de “povo”, embora não corresponda rigorosamente à definição literal, seja uma camada insignificante do eleitorado brasileiro. Simplesmente não o é.
À época da campanha presidencial, em 2018, um amigo me contou uma cena que havia presenciado em reunião de pretendentes a financiadores selecionados por Fabio Wajngarten. Uma cena horripilante. Questionado sobre como solucionaria o déficit habitacional, o então candidato não se fez de rogado e disse que mandaria um helicóptero despejar folhetos avisando que todos os cidadãos de bem que morassem em comunidade pobre saíssem de lá, sob pena de serem queimados no dia seguinte. Nesse dia, as mesmas aeronaves despejariam napalm no bairro. Mas não foi a proposta do ex-capitão terrorista que o aterrou, e sim os retumbantes aplausos que recebeu seu projeto homicida. Tolo foi pensar que as manifestações fascistoides na periferia dos massivos atos contra o desgoverno dos políticos tradicionais em 2013 eram insignificantes para despertarem um terror realista de alguma aventura golpista para interromper o interregno democrático iniciado em 1988, pós-Constituinte. Na verdade, os fascistoides não se expunham nas ruas, mas hoje se dispõem a manter o planejado autogolpe do nostálgico-chefe da ditadura.
Quem tinha a ilusão de que o presidente utilizou Sergio Moro como isca no Ministério da Justiça para, depois, impor um vassalo de sua famiglia, Anderson Torres, já não tem mais por que apostar na reeleição do celerado. Mas quem garante que a massa que aplaude as invasões da periferia miserável do Rio não tenha força bastante para levá-lo ao segundo turno do pleito vindouro, em 2022? Talvez o melhor alvitre seja pensar que Lula será o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), realizando a hipótese de dispensar quaisquer opções que não sejam remanescentes da polarização da intolerância de nosso mini-Mussolini, que ilude seu rebanho fiel ao reproduzir os próprios preconceitos ao desgovernar. E de quem acredita no “bom” ladrão Lula, inocentado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), todo nomeado por este e seus sucessores.
Que isso está no plano dos dois lados salta aos olhos. Augusto Aras, filho de Roque Aras, súdito de Chico Pinto, dedo-duro da ditadura e celebrado como herói pela esquerda, não precisou abjurar sua condição tríplice de petista, advogado e passador de pano do atual patrão para assumir a Procuradoria-Geral da República. E fica à calma espera de sua indicação para o STF nesta ou na futura indigestão bolsonareira. André Mendonça, favorito da primeira-dama Michelle para o lugar do decano Marco Aurélio Mello, dificilmente terá de esperar tanto para justificar no próximo futuro vassalagem a dois senhores, negando, assim, a fábula do Evangelho, que ele prega, por sábia hipocrisia. Humberto Martins, o favorito do primogênito Flavinho, o senador sonso, sabe que, mais dia, menos dia, surgirão novas investigações a seu respeito para que as obstrua e, com isso, aumente o cacife de sua eventual promoção pelo pai aflito.
O praticante da mais antiga corrupção de todos os tempos do serviço público – a extorsão da parte do leão dos salários de funcionários-fantasmas de gabinetes parlamentares – sabe que pode contar com três opções para a disputa pelo papai Messias no ano que vem. A saber: o voto de cabresto do gado leal garantindo a vitória final, a repugnância por Lula augurando o triunfo no segundo turno e o autogolpe do pai, apoiado pela patranha da fraude eventual da eleição na urna eletrônica. Com a vantagem de fazer o serviço completo para o caixa garantido da famiglia pelas milícias. A possibilidade de conferir pelo sufrágio impresso a manifestação dos súditos nos territórios comandados pelos milicianos de estimação constitui a maior vantagem de um cabo eleitoral na História do Brasil. Nem o voto de bico de pena assegurava fidelidade tão vassala na Velha República quanto a atual.
Ninguém deve estranhar por que a impressão do voto, cloroquina política, pílula do câncer eleitoral do charlatão-mor desta republiqueta, étão repetida no momento em que os crimes de responsabilidade estão sob o crivo do relator menos impoluto, mas mais difícil de ser dobrado, de todos os tempos, Renan Calheiros, na CPI da Covid no Senado. A perspectiva de trocar seis por meia dúzia, a de um impeachment que conduza Hamilton Mourão no Rolls-Royce no dia da posse, dificulta – e muito – uma solução constitucional que ceda à evidência do despreparo e do ímpeto genocida do provisório chefe da Nação. Mas é certo que é preferível contar com um terço de fanáticos capazes de aoiá-lo sabotando a vacina, o isolamento social e o uso de máscaras a ter de suportar a hipótese oposta. Lula, com seus lenientes idólatras, é, ao mesmo tempo, o único adversário capaz de enfrentá-lo de igual para igual, incluindo no coração volúvel do Centrão, e o gêmeo univitelino que pode manter o verniz de uma disputa legítima e fácil. O resto é lorota capaz de matar mais e imunizar menos ao sustentar o elo indissolúvel da manada unida à espera do napalm que só mate pobres. Bolsonaro é um vértice, e não um ponto fora da curva, deste país insensato.
*Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no Blog do Nêumanne segunda-feira 10 de maio de 2021)
Para ler no Blog do Nêumanne, Política, Estadão, clique aqui.