Lula se acha a encarnação de um pedaço de células de cada brasileiro
Lula nunca foi modesto. Já se comparou a Jesus Cristo, Tiradentes, Nelson Mandela e tantos outros quantos lhe convenham à hora e ao tempo. O ex-presidente mais popular do Brasil tem muitos defeitos, mas nunca fez ou disse algo que não seja para se exaltar e engrandecer. Apequenar-se, nunca!
Dia destes, falando a seus prosélitos, aludiu aos juízes que ousam julgá-lo, condená-lo – e até aí ele é capaz de chegar ao paroxismo de seu espanto e de sua revolta – afirmando peremptoriamente: “Estão lutando com um ser humano diferente. Eu não sou eu. Sou a encarnação de um pedaço de células de cada um de vocês”. E acrescentou, no melhor estilo evangélico: “Prendam minha carne, mas minhas ideias continuarão livres”. Não se assuste. O petista pode até exagerar na sua imodéstia, mas a verdade é que ele nunca precisou tanto dela quanto precisa agora.
Neste momento, seus desafetos, adversários e inimigos podem dizer sem receio: o homem não é mais suspeito, réu muitas vezes, acusado, difamado; ele agora é – sem dúvida nenhuma – condenado por dois crimes abjetos para qualquer pessoa, mais ainda para um ex-dirigente sindical, um chefão partidário, eternamente no palanque para disputar o mais elevado cargo político do Brasil: corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Sim, o juiz Sergio Moro condenou-o a nove anos e meio de cadeia na primeira instância. E daí? Daí o Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4), em Porto Alegre, confirmou a condenação e aumentou sua pena para 12 anos e um mês. Essa conta pode ser discutida, é possível argumentar que o tempo foi fixado para evitar uma prescrição próxima, pode-se alegar qualquer coisa em sua defesa nos tribunais. Menos uma: o fato está consumado. Fait accompli, diriam os franceses. A decisão de que o fato é criminoso, na Justiça brasileira, põe por terra o mimimi dos devotos da intelligentsia local e internacional de que ele é injustiçado e perseguido por golpistas da elite que não suportam o fato de ter permitido o acesso dos jovens pobres ao ensino superior e a suas famílias, o conforto de viagens aéreas. Fato é fato, gato é gato. E passado na segunda instância não pode mais ser contestado, revisto, alterado.
À espera de um veredicto benevolente do Supremo Tribunal Federal (STF), o conjunto imaginário das “luléculas” de todos os brasileiros não se contenta com a liberdade da qual se acha merecedor pelo simples fato de ter sido parido por dona Lindu, com a graça de Deus, Nosso Senhor, seu parceiro de buraco no sítio Los Fubangos, não aquele de Atibaia, que ele jura não ser dele. Ele quer que a suprema graça de poder tomar cachaça com Cambuci, herdada da “Nonna”, avó de dona Marisa, de saudosas memórias, venha acompanhada de outro benefício: a prisão dos inimigos. Em entrevista exclusiva à colega Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, ele não fez por menos e exigiu: “A Justiça tem o tempo necessário para fazer a investigação correta e punir quem está errado. E quem deveria ser punido era o Moro, o MPF, a PF e os três juízes que fizeram a sentença lá. Essas pessoas mereciam ser exoneradas a bem do serviço público”. Execração, prisão, desonra pública e demissão para os inimigos. É pouco?
Trata-se de um desejo de difícil realização. Por enquanto, não tem mais como ser absolvido no primeiro dos sete processos judiciais a que responde e tudo o que ele poderia almejar seria adiar a chamada “execução da pena”, já decidida em segunda e definitiva instância, para Deus sabe até quando, se ele aceitar, quem sabe ao atingir a idade atual do ex-inimigo e ex-aliado Paulo Maluf. Uma hora, a julgar pela tradição, chegará o dia de cumprir a pena. Pode ser na cela comum, por falta de diploma universitário, ou em outra em que caibam seus seguranças e assessores pagos pelos contribuintes. Estes também são “luléculas”, aliás, filhos de Deus. Ou no conforto do apartamento em São Bernardo com tornozeleira e sem poder receber amigos, como, por exemplo, o compadre Roberto Teixeira.
Os amigos do peito da alta Justiça já providenciaram alguns confortos para seu futuro. Há pouco, o Tribunal Regional Federal da 1.ª Região (TRF-1) transferiu processos em que é réu na 10.ª Vara Criminal Federal de Brasília, apesar das testemunhas ouvidas, das provas colhidas e tudo o mais pelo rigoroso juiz Vallisney de Souza Oliveira, para a recém-criada 12.ª. Todavia, como seu parceiro de cartas é misericordioso, mas também tem de cuidar de ser justo, por enquanto, a péssima repercussão da medida levou o TRF-1 a devolver os processos ao juiz que o tornou réu.
E impôs-lhe outro obstáculo irremovível. O principal deles é o juiz federal do Paraná Sergio Moro, da 13.ª Vara Criminal Federal de Curitiba. Pois não é que um dos tais “três juízes que fizeram a sentença lá”, justamente o relator Gebran Neto, ousou indeferir o pedido de sua diligente defesa para afastar esse magistrado do processo da Lava Jato que o acusa de ter recebido propinas das empreiteiras baianas OAS e Odebrecht na reforma de um sítio em Atibaia, que membros do MPF, também execrado por ele, afirmam que lhe pertence? O pedido foi baseado na lógica, não a de Aristóteles, Santo Tomás ou Santo Agostinho, mas na de Djalma Bom, o companheiro orador dos tempos das greves de metalúrgicos no ABC de Luiz Marinho. Acompanhe o raciocínio: Sergio Moro fez uma palestra numa reunião que tratava decompliance nas dependências da Petrobrás. Já seria suspeito pelo fato de o encontro tratar dessa mania de gringo, além do mais definida em inglês, compliance. Mas mais suspeito ainda seria o fato de a estatal contratar advogado para auxiliar da acusação do processo do tal do sítio. É o caso de exclamar: valei-me, Santa Bárbara! Pois então, o relator rasgou o tomo da suma do compadre Djalma dizendo que o tema da conferência do julgador nada tinha que ver com o objeto do tal processo em que Lula é réu e, pelo visto, está para ser apenado. Ora, ora,compliance não quer dizer boa prática de gestão, o contrário de corrupção? E não é de corrupção que o processo trata?
Outro episódio noticiado no mesmo dia em que a Folha publicou que ele jura que não se matará nem fugirá do Brasil, mas brigará até o fim, o Estado contou que o antigo parceiro e hoje abjeto delator premiado – e logo ele, que dizia condenar delação – Marcelo Odebrecht entregou à turma da Operação Lava Jato e a Moro e-mails de seu computador pessoal relacionando-o com as obras da reforma do sítio. E daí? Compadre Djalma Bom diria, pela lógica dele, que um bom amigo faz o que pode pelos amigos e pelos filhos deles. Como compadre Jacó Bittar está dodói na Ilha Porchat, caberia a Lula providenciar facilidades burocráticas para seu filho Fernando e o sócio dele, Jonas Suassuna, “verdadeiros” donos do sítio.
Já que é mais fácil nevar em Cuiabá do que Moro e os meninos do PowerPoint de Curitiba aceitarem o pedido da defesa de Lula de jogar no lixo da História os e-mails do filho do “amigo” Emílio, a batata do ex está assando e deverá torrar completamente em breve. Seja qual for a decisão dos amigos Dias Toffoli, Lewandowski e Rosa Weber e do ex-desafeto Gilmar Mendes no STF, mais uma condenação na primeira instância, com boa chance de ser corroborada na segunda, não será a melhor notícia para quem disse à entrevistadora amiga que só vai aventar a possibilidade de outra candidatura (do PT) “quando for confirmado definitivamente” que ele não é candidato. Afinal, o STF poderá até, como parece que vai fazê-lo, apesar do vergonhoso casuísmo que isso significará, adiar para as calendas gregas o momento da execução de sua (ou suas) pena (ou penas). Mas jamais impedir que um dia, que não seja o 31 de novembro dos recibos do aluguel do compadre Glaucos, ele seja proibido de circular por aí.
Em Brasília, até se comenta à boca pequena que ele não será preso agora, mas também não será candidato, e obterá de seus amigos dos altos escalões judiciários vista grossa para poder fazer campanha e participar de pelo menos quatro debates eleitorais apresentando um vice. Este, na hora H, receberá os votos que lhe forem destinados nas urnas eletrônicas em outubro e novembro. No reino da condescendência que permite a Dilma ser merendeira de escola por um rabisco na Constituição, tudo é possível. Só que isso nada significa para quem se acredita a soma “lulecular” de todos os brasileiros – ele só não definiu se seriam vivos e mortos ou apenas os atuais 200 e poucos milhões presentes na luta terrível de sobreviver a uma crise de 12,7 milhões de desempregados que os desgovernos seus e da afilhada Dilminha aqui implantaram. Para geral desgraça nacional.
José Nêumanne Pinto
Jornalista, poeta e escritor
(Publicado no Blog do Nêumanne na segunda-feira 5 de março de 2018)