No Blog do Nêumanne: A malandragem impune dos agressores covardes

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José Nêumanne

O jogador branco que gritou “cala a boca, negro”, o parlamentar paulista que apalpou a colega no plenário da Alesp e o juiz que depreciou a Lei Maria da Penha valem-se da impunidade

Em 8 de dezembro último, a partida pela Liga dos Campeões da Europa entre o PSG de Paris e o Istambul Basaksehir foi suspensa aos 23 minutos do primeiro tempo, depois que o atacante Demba Ba, do time turco, acusou o quarto árbitro, o romeno Sebastian Coltescu, de ter feito ofensas racistas ao ex-jogador camaronês Pierre Webó, membro da comissão técnica do clube turco. Os jogadores dos dois times, entre eles o brasileiro Neymar Jr., saíram do campo e só voltaram a jogar no dia seguinte. O episódio repercutiu muito no mundo inteiro, também no Brasil, é claro.

A maneira como as duas equipes se comportaram foi apontada como exemplo a ser seguido na luta contra o racismo, uma das pragas que assolam os estádios de futebol em todos os quadrantes. Doze dias depois, em prélio pela 26.ª rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol da Primeira Divisão, o armador Gerson, do Flamengo, acusou o meia Índio Ramires, do Bahia, de lhe ter dito, aos 7 minutos do segundo tempo: “Cala a boca, negro”. Câmeras e microfones da transmissão não captaram o insulto. Mas as imagens mostram que o ofendido disse algo ao árbitro do jogo, o paulista Flávio Rodrigues de Souza, que não lhe deu atenção e continuou apitando, como se nada tivesse acontecido de extraordinário. Mas, insatisfeito, o ofendido tentou tomar satisfações do agressor, que foi defendido por seu treinador, Mano Menezes, demitido depois do apito final por causa do mau desempenho do time que treinava.

O comportamento do soprador de apito, que havia alegado a manutenção do próprio controle sobre a disputa para expulsar, aos 9 minutos do primeiro tempo, o atacante do time anfitrião, Gabriel Barbosa, por haver-lhe dirigido um palavrão à distância, lembrou em tudo e por tudo outro episódio lamentável, três dias antes, no plenário da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). Durante a sessão, a deputada Isa Penna, do PSOL, foi abraçada por trás pelo colega Fernando Cury, do Cidadania, que levou a palma da mão à lateral de seu seio. A parlamentar empurrou o intruso sob o olhar indiferente do presidente da Casa, Cauê Macriz, do PSDB, que não tomou nenhuma atitude para, pelo menos, repreender o agressor, cujo hálito, segundo a agredida, cheirava a álcool. Ela disse ainda que ouviu comentários de um grupo atrás dela a respeito de seu corpo. O partido do deputado suspendeu-o do exercício de cargos de sua direção. A vítima psolista informou que apelaria à polícia e à Justiça para punir a agressão na forma da lei. O colega ousado prometeu dar “sua versão” assim que fosse convocado pelos companheiros do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) e pela Alesp a fazê-lo.

A esses dois episódios, gravíssimos sob todos os pontos de vista, é possível ainda acrescentar um terceiro, denunciado pelo site Papo de Mãe. Ele reproduziu nas redes sociais áudio em que um juiz, não identificado, debochou da Lei Maria da Penha durante audiência da autora da causa num processo de guarda de menor e pensão alimentícia, na presença do ex-casal, de um promotor de Justiça e duas advogadas.

“Se tem Lei Maria da Penha contra a mãe (sic), eu não tô nem aí. Uma coisa que eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça”, disse o magistrado, que também debochou das medidas protetivas. E em outro momento chegou a declarar que, ainda que o agressor fosse “um figo podre”, a “escolha” havia sido da vítima e ela “não tem mais 12 anos”. Além de ter ameaçado tirar a guarda do menor da mãe, a “otoridade” ainda apelou à sua experiência de julgamentos na Vara de Família de São Paulo para assegurar que nunca viu ou ouviu agressão sem causa.

Nos três casos citados repete-se o abuso de autoridade do árbitro, responsável por garantir a realização da partida disputada dentro das regras do jogo, não para satisfazer o próprio senso de superioridade, e do magistrado. Em nome de sua posição superior à dos participantes da agressão, o árbitro de futebol, o juiz de “direito” (direito de quê, de quem?) e o presidente da Alesp agiram como se a omissão fosse o exercício de sua superioridade. Esses casos e outros similares se enraízam na cultura escravagista e machista da História do nosso país, o último a abolir a escravidão no Ocidente — de forma incompleta, resultando no dito “racismo estrutural”, como advertiu o grande abolicionista Joaquim Nabuco. E o voto feminino só foi permitido no Rio Grande do Norte em 1927, 105 anos após a Independência e 38 após a proclamação da República.

O “cala a boca, negro” do colombiano, que se acha no direito de considerar cidadão de segunda categoria um brasileiro por causa da cor de sua pele, e o “tô nem aí” do juiz, servidor público encarregado de aplicar as leis da República de conformidade com sua sesquipedal ignorância, são similares ao abraço forçado da fêmea indefesa pelo macho alfa. Os três fatos têm raízes históricas, mas é preciso reconhecer que a colega Vera Magalhães tem razão, ao escrever no artigo publicado no Estadão em 16 de dezembro último, Boçalidade contagiosa: “Mais que o vírus, é o comportamento indigno do presidente que se alastra”.

O árbitro Flávio Rodrigues de Souza, o técnico Mano Menezes, os colegas de time do colombiano Índio Ramires e os de Gerson, presidente e deputados da Alesp e a cúpula do Judiciário paulista são todos cúmplices daquilo que se pode definir como a malandragem impune dos agressores covardes. Só respiraremos o ar puro de uma democracia de verdade, que não se limite a eleições e solenidades de posse, quando todos puderem repetir a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia ao se referir à liberdade de expressão: cala a boca, nunca mais, brancos e machos sem penas a cumprir.

  • Jornalista, poeta e escritor

(Publicado no Blog do Nêumanne na segunda-feira 21 de dezembro de 2020)

Para ler no Blog do Nêumanne, Política, Estadão, clique aqui.

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