Americanos não ganham mais porque imitam europeus, diz Zico
Zico estranha que as seleções sul-americanas não vençam mais Copas do Mundo, de vez que os melhores jogadores dos maiores clubes europeus nascem em nosso subcontinente
“Temos perdido um pouco da identidade do nosso futebol sul-americano, do drible, do um contra um, da magia, da técnica, da qualidade, e estamos jogando somente o plano tático, no estilo europeu. O jogador sul-americano está indo muito cedo para a Europa e, em vez de treinar a individualidade, evoluir o lado de jogador, ele está mais preocupado com a questão técnica e tática.” Esse diagnóstico é feito por Zico, o maior ídolo da história do clube mais popular do Brasil, o Flamengo, o verdadeiro fundador do futebol no Japão, onde passou 15 anos e atuou como jogador no Kashima Antlers, além de ter sido técnico da seleção nacional e dirigente. Preparando-se para voltar ao Japão em agosto e assumir um cargo na direção do mesmo clube que o projetou no Oriente, ele jura amor eterno à sua cidade, o Rio de Janeiro, assegurando que nunca se vai mudar definitivamente de lá, por mais difícil que seja viver na antiga “cidade maravilhosa”.
Filho de pais portugueses, irmão mais novo de uma família de craques, na qual se destacou Edu, que também foi jogador e técnico, aos 65 anos Arthur Antunes Coimbra, o “galinho de Quintino”, como é conhecido pela torcida do Flamengo, com o qual se tornou campeão mundial de clubes em 1981, não se surpreende com a supremacia atual do futebol europeu. Ex-jogador de um time médio da Itália, a Udinese, Zico é de uma geração que se formou no próprio país, ao contrário de Lionel Messi, que nasceu na Argentina, mas vive na Espanha desde a infância, e de Vinicius Júnior, a última grande revelação de seu clube de coração e que acaba de se apresentar ao Real Madrid, desde que completou a maioridade. Comentarista de televisão do Esporte Interativo, ao lado de craques do passado como Rivelino e Leão, e também de um canal de YouTube, no qual interage com jovens, que não o viram jogar, o craque também reclama que “não se pode confundir democracia com bagunça e, infelizmente no Brasil estamos confundido democracia com bagunça, desordem”.
N – Quando o lateral direito inglês Trippier abriu o placar nas quartas de final contra a Croácia, que sensação o senhor viveu: saudade daquelas tardes de domingo no Maracanã nos anos 70 e 80; nostalgia da época em que o futebol mundial em geral e o brasileiro em particular tinham um elenco muito maior de batedores de faltas, entre os quais o senhor mesmo; ou uma queixa dos novos esquemas dos treinadores de ponta que privilegiam outras jogadas de bola parada, como as faltas longe da área e os escanteios, conforme ficou comprovado nesta Copa da Rússia?
Z – Não sou nada nostálgico, não fico pensando no que passou. Admiro o futebol atual. Em função do futebol jogado hoje, com fortes marcações e táticas de jogo, acho que os times deveriam ter sempre bons batedores de bola parada, porque isso resolve o jogo e o Brasil, a meu ver, está pecando muito nisso. Há bastante tempo não fazemos gol de falta e só temos praticamente o Neymar, que cobra bem faltas. Então, vejo com bons olhos uma falta bem cobrada daquela maneira pelo lateral da Inglaterra. Assim como faz o Cristiano Ronaldo. A bola parada depende muito do talento do cobrador, mas exige dele muito treino. Deus dá o dom de bater na bola, mas é preciso aprimorar isso. O batedor tem de se aplicar, tem de separar um tempo, principalmente depois dos treinos, para praticar bastante e poder ter um índice de aproveitamento maior.
N – O que a seleção da Bélgica tem de semelhante e de diferente de outras “gerações de ouro” que não ganharam Copas, como as da Argentina nos anos 40, quando não foi jogado o Mundial, do Brasil nas Copas de 1950 e 1982, da Hungria em 1954 e da Holanda em 1974 e 1978? Como representante da geração de 1982, de alguma forma o senhor sentiu algum tipo de afinidade com os flamengos da Europa, que este ano nem chegaram à final?
Z – A Copa do Mundo é um torneio diferente de um campeonato, em que dificilmente times com a qualidade da Bélgica desta Copa, de nossas seleções de 1986 e 1982, ou da Hungria de 1954 perderiam. A diferença é que na Copa do Mundo é mata-mata: quem joga mal um dia é eliminado. Então, admiro bastante o futebol desses times. Nesta Copa do Mundo me chamou a atenção o futebol da Croácia e da Bélgica. Não importa se ganharam ou não. Mesmo que fique para a história quem ganhou, é melhor se for possível ganhar jogando bem, como aconteceu conosco em 1970 e em 2002, com a Espanha em 2010 e com a Alemanha em 2014. Jogar bem, ter um jogo ofensivo de jogadas bacanas, isso é bom futebol. Mas não quer dizer que sempre vá funcionar na Copa do Mundo, em que os jogos das oitavas de final em diante são eliminatórios.
N – O senhor pertenceu à última geração dos craques que se identificavam com as torcidas dos clubes onde surgiram e se consagraram. Hoje os grandes jogadores são nômades da bola, que percorrem a Terra e não guardam fidelidade com nenhum clube, até nem com o país. Em que essa nova realidade de globetrotters altera a relação entre o ídolo e a camisa?
Z – Não existe mais nem o ídolo só de um clube nem a identificação da seleção com os torcedores de clubes. Existe, sim, a torcida brasileira em Copas do Mundo. Mas não tenho dúvida de que, sem ídolos de seus clubes, os torcedores não são fiéis a uma seleção nem motivados: se a seleção ganhar, ganhou; se não ganhar, tudo bem. Os torcedores não ficam tão chateados. Se a seleção brasileira fosse formada, digamos, por cinco craques do Flamengo, três do Corinthians, quatro do Vasco, dois do Botafogo… Não é o caso de agora, pois o grupo é formado por jogadores de clubes estrangeiros, com os quais as torcidas nacionais não se identificam. Por isso não existe discussão da Copa do Mundo no dia seguinte ao dia em que o Brasil foi ou for eliminado.
N – Além de sua ligação com o Flamengo, o senhor tem também uma história de protagonismo no futebol japonês, onde encerrou sua carreira de jogador e atuou como treinador da seleção. O senhor sentiu alguma frustração ao ver o Japão e o Brasil serem eliminados pelo mesmo adversário, a Bélgica, e com a mesma jogada: um escanteio a favor e um contra-ataque fulminante que podia ser parado com uma falta tática, mas não o foi?
Z – Primeiramente, não sou favorável à falta tática. Ao contrário, sou totalmente contra. Na falta tática, quando o jogador para uma jogada sem a bola, deverá ser expulso imediatamente. Em vez de procurar a bola, o jogador vai parar a jogada. Isso não deveria ser estimulado, pois acontece que a bola é o essencial do jogo. A falta, para mim, é legítima quando se disputa uma bola e o adversário chega primeiro; sou totalmente contra o jogador já ir com a intenção de fazer a falta tática. É um absurdo. Quanto à derrota do Japão e do Brasil para a Bélgica, o mérito é do time belga. A derrota do Japão, tudo bem, pois os japoneses ainda são inexperientes e sofreram um contra-ataque no fim do jogo. O biotipo do japonês expõe o time a gols de cabeça quando enfrenta seleções mais altas. Eu mesmo sofri muito com isso lá no Japão. Mas o Brasil foi muito infantil naquele gol e na cobrança do escanteio. O time já tinha vivido a mesma situação contra a Suíça, em que havia sete brasileiros e um da Suíça sozinho fugiu da marcação para fazer o gol. Isso, a meu ver, é um erro para o futebol brasileiro, para esses jogadores todos que têm esse know-how, essa experiência. Um completo absurdo.
N – Como ex-jogador, ex-técnico, ex-dirigente e agora comentarista de televisão, o senhor viu alguma coisa na Copa da Rússia que possa considerar novidade tática a predominar doravante?
Z – Não, nenhuma. E lamento que a final não tenha sido Croácia x Bélgica, pelo bem do futebol, porque normalmente vence a Copa o time que fez prevalecer aquele futebol de 11 atrás. Por exemplo, estavam dizendo que o Girou não faria gol na Copa. Mas, claro, ele não pode fazer gol, pois o cara estava marcando no meio-campo; da linha da intermediária até chegar lá no gol, ele não aguentava mais mesmo. O mesmo aconteceu com o Gabriel Jesus. São 11 atrás da linha da bola, o cara vai lá e não chega ao gol. A única evolução que vi no futebol foi o árbitro de vídeo. Em grandes competições, isso pode evitar injustiças que já aconteceram em outras Copas: gols com a mão, bola que entrou, essas coisas todas que não gosto de ver no futebol. Afinal, alguém trabalha quatro anos, luta para se classificar e, de repente, é eliminado numa jogada ilegal.
N – O futebol hoje é um negócio bilionário do ramo do entretenimento, mais do que uma modalidade esportiva. A seu ver, é isso que está tirando o continente americano da liderança das competições, o que começou com a predominância europeia nos mundiais de clubes, um dos quais o senhor conquistou pelo Flamengo em 1981, e agora se consagra de vez com a América fora dos jogos finais da Copa de 2018?
Z – É, mas não deveria ser, porque os jogados sul-americanos são os mais caros e estão nos melhores times do futebol europeu. Estão todos lá no Barcelona, no Real Madrid, no Bayern, nos times principais da Europa: na Espanha, na França, na Inglaterra. O que pode ser uma das razões é termos perdido um pouco da identidade do nosso futebol sul-americano, do drible, do um contra um, da magia, da técnica, da qualidade, e estamos jogando somente o plano tático, no estilo europeu. O jogador sul-americano está indo muito cedo para a Europa e, em vez de treinar a individualidade, evoluir o lado de jogador, ele está mais preocupado com a questão técnica e tática.
N – Os projetos bem-sucedidos da Alemanha em 2014 e da França, Inglaterra e Bélgica neste Mundial passam pelo envolvimento dos clubes, enquanto na América em geral e no Brasil em particular os clubes são os primos pobres e oprimidos de confederações milionárias. É possível resgatar as conquistas do passado sem mudar radicalmente essa realidade?
Z – É duro ter um futebol comandado por um cara que está preso, um que está banido, um que está foragido, um que foi eleito às escuras e um que está no comando sem se saber o que ele fez no futebol. Então, é lógico que não há autoridade para reunir um time e refletir a importância do futebol para a federação, para o País. Os clubes são coniventes com essa situação em que, como célula mater do futebol, estão sendo jogados às traças, aceitando uma administração que não lhes traz nenhum benefício e os obriga a vender os jogadores da base o mais rápido possível.
N – As entidades que dirigem o futebol no Brasil e na América do Sul e a própria Fifa não resistem a investigações sérias e competentes de corrupção. Sua retirada do ambiente do futebol tem algo que ver com isso? Essa triste realidade influi, na sua opinião, no afastamento de nossos clubes e da seleção do protagonismo nos torneios internacionais disputados hoje?
Z – Não me retirei do futebol. Eu continuo no futebol. Não estou treinando nenhum time nem dirigindo clube algum, mas tenho uma atividade intensa na internet e no canal de televisão Esporte Interativo. Não creio que essa realidade que você descreve influa, mas acho que ela, de fato, diminui o crédito. O problema é que esses investimentos não foram feitos nos clubes e em grandes campeonatos. O melhor campeonato do mundo, a Champions League, da Inglaterra, que é a grande referência, demonstra a importância dos investimentos, mas esse espírito não está presente na Libertadores e isso atrapalha o desenvolvimento do futebol sul-americano. Ainda temos aqui os resquícios do ganhar na marra, de modo ilícito, no jeitinho, enquanto lá fora os caras estão organizados, jogando um futebol limpo e realmente de melhor qualidade.
N – O Brasil vive talvez o pior momento da sua História, com uma crise ética, econômica, financeira, institucional e política sem precedentes. Mas o senhor não dá sinais de que pretenda deixar o País definitivamente, como muitas pessoas na sua condição já o fizeram. Neste ambiente de desemprego, descrédito e até desespero, o senhor enxerga alguma luz num ano de eleições gerais, que pelo menos confirmam nossa opção pela democracia?
Z – Acho que não se pode confundir, e acabamos confundindo, democracia com bagunça, desordem. Estamos desrespeitando o lema da nossa bandeira, “ordem e progresso”. Pedimos tanto a democracia, só que virou bagunça. A disciplina inteligente nunca imperou no nosso país, com os nossos deveres e as nossas obrigações. Estamos em desvantagem, porque acreditamos em certas pessoas ultimamente e elas acabaram nos decepcionando. Mas não podemos desistir, temos sempre de tentar trabalhar sem o pensamento de votar em troca de um benefício individual. Não. Vamos fazer uma limpeza, para não nos enganarmos mais e não termos de pagar um preço tão alto como nos últimos anos.
N – Quando o senhor anda hoje pelas ruas do Rio encara uma realidade muito diferente da que viveu nos seus tempos no subúrbio de Quintino e mesmo nos anos de glória de sua carreira de ídolo do clube de maior torcida da cidade e do País. Como carioca, como o senhor convive com a tragédia de sua cidade, que foi maravilhosa e hoje está longe de poder ser considerada sequer um lugar aprazível para viver e criar a família?
Z – Amo muito esta cidade. Então, procuro, dentro da minha área, dar o meu melhor. O momento realmente é difícil, mas temos de ser otimistas e acreditar que isso pode mudar, para que a gente possa ter um Rio para os nossos netos mais agradável, mais tranquilo, menos violento, menos propineiro, menos vergonhoso para nós. Em algumas áreas temos coisas importantes e, em outras, decepcionantes. Não vou me mudar do Rio por nada, vivo muito bem aqui com o fruto do meu trabalho, do meu suor, do meu esforço. E vou tentando, nos limites do que posso fazer, ajudar o meu Estado.
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